sexta-feira, 13 de maio de 2016

Sermão do Santíssimo Nome de Maria - Padre Antônio Vieira


Dos Sermões do Padre Antônio Vieira


Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.





SERMÃO DO SANTÍSSIMO NOME DE MARIA

Na ocasião em que S. Santidade instituiu a festa universal do mesmo Santíssimo nome.


Et nomen Virginis Maria[1].
§ I
A que fim, se o sermão desta nova solenidade se pregava no céu, todas as jerarquias dois espíritos bem-aventurados e todos os nove coros dos anjos haviam de estar presentes? Por que na História dos Cantares perguntam os anjos tantas vezes quem é Maria? Revelação da Virgem a Santa Brígida. Os anjos, ambiciosos ouvintes do nome de Maria. Em quanto, como mortais, podemos exceder o desejo e gosto dos anjos?
Se o sermão desta nova solenidade se pregara no céu, todas as jerarquias dos espíritos bem-aventurados e todos os nove coros dos anjos se haviam de achar neste auditório. A matéria, tão imensa como breve, se resume toda a uma só palavra. Isto é o que refere o evangelista S. Lucas no texto, também breve, que propus, dizen­do que a Virgem escolhida para Mãe de Deus tem por nome Maria: Etnomem Virgi­nis Maria (Lc. 1, 27). – Um anjo trouxe a embaixada à Virgem, o mesmo anjo foi o primeiro, que pronunciou o nome de Maria, e todos os anjos haviam de concorrer, como dizia, a ouvir o panegírico do mesmo nome: mas por que ou para quê? Porventura para saberem alguma coisa de novo? Não, porque muito mais sabem e penetram deste altíssimo argumento os anjos do que podem discorrer e alcançar todos os en­tendimentos humanos. Porventura, para se aproveitarem dos maravilhosos efeitos que em seus veneradores causa o mesmo nome? Também não, porque os anjos nem têm que emendar nem podem crescer. Não têm que emendar, porque no céu não há pecado, nem podem crescer, porque no céu não se aumenta a graça. A que fim, logo, se haviam de achar neste auditório hoje, desde o ínfimo ao supremo, todos os estados dos anjos? Digo que só para ouvir o nome de Maria. E vede se falo com fundamento.
Três vezes na História dos Cantares viram os anjos a Esposa Divina, que é a mesma Virgem, e notam os mais advertidos expositores que outras tantas vezes pergun­taram quem era: Quae est ista? Quae est isto? Quae est isto? (Cânt. 3, 6; 6, 9; 8, 5)? –Os anjos bem sabiam que a cheia de todas as virtudes e graças, como a composição cheirosa composta de todas as espécies aromáticas, era unicamente a bendita entre to­das as mulheres: pois, por que perguntam quem é? Quae est isto quae ascendi! per desertum sicut virgula fumi ex aromatibus mvrrhae, et thuris, et universi pulveris pigmentarii[2]? –Os anjos bem sabiam que a que amanheceu neste mundo, desfazendo as trevas da noite e abrindo as portas aos primeiros resplendores da luz, como formosa e alegre aurora, era a Mãe do verdadeiro Sol: pois, por que perguntam quem é: Quae estista quae progreditur quasi aurora consurgens[3]? – Os anjos bem sabiam que a que subiu da terra ao céu com a mão sobre o braço do seu amado, e não indo buscar as delícias, senão levando-as já consigo, era a mesma Senhora no triunfo de sua gloriosa Assunção: pois por que perguntam quem é: Quae est isto quae ascendit de deserto, deliciis affluens, innixa super dilectum suum[4]? – Perguntar a primeira vez, tinha des­culpa, se foram homens, mas não só uma, senão tantas vezes, sendo anjos? Sim, e por isso mesmo. Quem não pergunta por ignorância pergunta por gosto; e é tanto o gosto que todos os espíritos angélicos recebem em ouvir pronunciar o nome de Maria que só porque lhe respondem que é Maria perguntam tantas vezes quem é: Quia Mariae dulce nomen desiderant sibi responderi[5] – diz Ricardo Laurentino.

Eu não posso negar que o pensamento é esquisito, e parece remontado; mas por que se não atribua só à agudeza e devoção deste autor, ouçamos a outro, não menos devoto nem menos sábio: Tantae rimais – são palavras daquele espí­rito extático, que, sendo mestre e doutíssimo, por humildade se chamou Idiota – Tantae virtutis et excellentiae est tuum sanctissimum nomem, o beatissima Virgo, ut ad invocationem ipsius caelum rideat, et angeli congaudeant[6]É tão grande – diz – a virtude e excelência de vosso santíssimo nome, ó Virgem beatíssima, que quando se pronuncia e invoca, todo o céu ri, e todos os anjos se alegram. – Admi­rável coisa por certo, que os espíritos celestes, os quais estão com os olhos cheios da vista de Deus, tenham outro desejo e outro gosto! Mas ainda é mais admirável que este desejo seja de ouvirem o nome de Maria, e este gosto quando o ouvem.
E por que ninguém cuide que estes dois testemunhos recebidos e aprovados de toda a escola da Teologia falaram com as afetações do encare­cimento, a mesma Virgem Maria, como oráculo superior a todo o criado, nos ensinará sinceramente a verdade do que havemos de crer. Falando a Senhora com Santa Brígida nas suas revelações, diz assim: Filius meus quantum ho­noravit etiam nomem meun audi: Ouve, Brígida, quanto meu Filho, não só me honrou a mim, senão também o meu nome. Nomen meum est Maria; hoc nomen, cum angeli audiunt, gaudent in conscientia sua et regratiantur Deo[7]O meu nome é Maria: e este nome, quando o ouvem os anjos, se alegram interiormente, e dão graças a Deus por ele – não porque ouçam alguma coisa de novo, mas porque se lhes renova a memória e o gosto do que já sabem, que isso quer dizer in conscientia sua. – E não só os anjos do céu, senão os que neste mundo guardam os homens, quando algum nomeia e invoca o nome de Maria, logo se chegam mais a ele para o ouvir de mais perto, e lhe assistem com maior cuidado: Angeli etiam boni audito hoc nomine statim appropinquant mugis justis. – De sorte que, para fazermos mais nossos os nossos anjos da guarda, e sermos mais benevolamente assistidos deles, a melhor ora­ção, e o maior obséquio que lhes podemos fazer é nomear muitas vezes o nome de Maria.

Sendo, pois, os anjos tão devotos, ou, para o dizer com frase de S. Hilá­rio, tão ambiciosos ouvintes do nome de Maria, de que outro exórdio podia eu usar neste seu dia, nem mais nobre. nem mais bem fundado, ou que exemplopodia propor mais eficaz e mais digno de imitação aos que com entendimento e curiosidade humana esperam as primeiras notícias deste novo assunto? Das que eu trago para publicar – que são as mais importantes ao inteiro conceito do mesmo nome – só posso afirmar que me não poupei ao estudo. E, posto que a matéria é tão alta e incompreensível, que ainda onde os ouvintes são homens devera o prega­dor ser anjo, se ouvirmos contudo o pouco que se pode dizer, com a atenção e estimação que a mesma matéria merece, não só prometo que imitaremos os anjos, mas que em parte não pequena os excederá a nossa sorte mortal. Os anjos ouvem o nome de Maria com tanto desejo e tanto gosto, como vimos; nós não só o pode­mos ouvir com desejo e com gosto, mas com grande utilidade e aumento de graça, dos quais o seu estado não é capaz. Para que assim seja – que é o fim que preten­deu a Igreja nesta nova celebridade – valhamo-nos do favor, auxílio e virtude do mesmo nome. Dizendo: Ave Maria.



II
Que coisa é o nome? As três partes do discurso: quão alta dignidade é a do nome de Maria, por ser o seu instituidor Deus; quão imenso é o significado desse sacratíssimo nome; como nos havemos de aproveitar dos maravilhosos efeitos do mesmo significado.

Et nomen Virginis Maria.
Para falar do nome inefável de Maria, e para se entender com distinção e clareza o pouco que se pode dizer de matéria tão imensa, primeiro que tudo (levemos supor que coisa é isto a que chamamos nome. O nome, diz Aristóteles, é uma voz significativa, cujo significado lhe dá a instituição de quem o fez. Diz mais, que os fins para que se inventaram os nomes é a declaração dos conceitos por eles significados, porque, como os conceitos não se vêem e as vozes se ouvem, pelas vozes ouvidas vimos em conhecimento dos conceitos que não vemos. Isto suposto. o instituidor do nome de Maria foi Deus, o qual o revelou primeiro a Santa Ana, e depois a S. Joaquim, assim como o nome de Jesusprimeiro foi revelado à mesma Virgem, e depois a S. José. O tempo desta insti­tuição foi antes de todo o tempo, no princípio da eternidade. Então, como diz a mesma Senhora, foi concebida na mente divina: Nondum erant abyssi, et ego jam concepta eram[8] – e então saiu da boca do mesmo Deus o nome cone que foi significado este eterno conceito do Altíssimo: Ego ex ore Altissimi prodivi primogenita ante omnem creaturam[9]. – A primeira conclusão, pois, que daqui se segue. é que nós não podemos conhecer, senão muito imperfeitamente, as divinas perfeições que se encerram no nome de Maria, porque o conceito do que significa este soberano nome foi parto do entendimento divino, que é infi­nito, e o significado pela voz do mesmo nome é o que nós só podemos perceber com o entendimento humano. que é tão fraco e limitado. Para dizer, porém, alguma coisa do que fora mais fácil calar e venerar com o silêncio, se dividirá o meu discurso em três partes. Na primeira veremos quão alta dignidade é a do nome de Maria, por ser o seu instituidor Deus. Na segunda, quão imenso é o significado que na breve e doce voz deste sacratíssimo nome se encerra. Na terceira, como nos havemos de aproveitar e valer dos maravilhosos efeitos do mesmo significado, pela invocação freqüente do mesmo nome. A mesma Se­nhora se digne de favorecer a tenção com que, para glória sua e igual bem de nossas almas, fiz eleição deste assunto.

§ III
O respeito e dignidade com que foram criados e postos no firmamento o sol, a lua e as estrelas, e o singular privilégio e dignidade com que Deus não comunicou a outrem, mas reservou para si a formação e instituição do nome de Muniu. Como foi tão singular um nome que já era tão comum? Quanta diferença vai de ser chamado por Deus o11 por outrem um nome, ainda que seja ou pareça o mesmo. O nome de Israel, pronunciado pela boca de Deus, e o nome de Ótimo que o Senado deu ao imperador Trajano.

O cardeal S. Pedro Damião, escrevendo a origem do nome de Maria, diz que o tirou e desenvolveu Deus dos tesouros de sua divindade: De thesauro divi­nitatis Mariae nomen evolvitur[10]. – Não encomendou Deus a instituição deste soberano nome, nem a Adão, nem a Noé, ou a algum dos maiores patriarcas, nem a Micael, nem a Gabriel, ou a algum dos mais sábios querubins ou serafins do empíreo, mas assim como o conceito e a idéia deste grande nome foi o entendi­mento divino, assim o som e a voz quis que fosse pronunciado de sua própria boca. E quem duvida que a mais alta e excelente dignidade a que pode subir em sua origem uma criatura é ter por seu imediato e total autor o mesmo Deus? Ao terceiro dia da criação do mundo disse Deus à terra que produzisse as ervas e as plantas: Germinet terra herbam virentem, et lignum pomiferum[11]. Ao quinto disse à água que produzisse os peixes e as aves: Producant aquae reptile animae viventis, et volatile super terram[12]. – Ao sexto dia tornou a falar com a terra, e disse-lhe que produzisse todo o gênero de animais: Producat terra animam viven­tem in genere suo, jumenta, et reptilia, et bestias[13]. – Porém, no quarto dia, em que houve de ornar o firmamento e alumiar o mundo com o sol, lua e estrelas, não disse Deus ao céu que as produzisse, senão que ele por si mesmo fabricou e acen­deu aqueles luminares do universo, e por si mesmo as colocou no firmamento: Fecit Deus duo laminaria magna: luminare majus, ut praeesset diei, luminare minus, ut praeesse nocti, et stellas. Et posuit eas in firmamento[14]. – Pois, se Deus mandou à terra que produzisse as plantas e animais, se mandou à água que produ­zisse peixes e as aves, por que não mandou também ao céu que produzisse o sol e a lua, e os outros planetas? E se a terra produziu as flores, que são as suas estrelas, o céu por que não produziu as estrelas, que são as suas flores? Porque essa é a diferença que Deus costuma observar na produção de suas criaturas, conforme a dignidade delas. As plantas e os animais produza-os a terra, os peixes e as aves produzamos a água, porém, o sol, a lua e as estrelas, que na alteza do lugar, nos resplendores da luz e na virtude das influências excedem, com tanta eminência, a tudo quanto lhes fica abaixo neste mundo elementar, nem ao mesmo céu cometeDeus a sua produção, senão que ele por si mesmo as produziu: Fecit luminaria magna, et stellas–e ele mesmo lhes dividiu e distribuiu os postos: Et posuit eas in firmamento.

Tal foi o respeito e autoridade com que foram criados e postos no firma­mento o sol, a lua e as estrelas, para que nesta mesma exceção se esteja lendo no céu, escrito com letras de ouro, o singular privilégio e dignidade com que Deus não comunicou a outrem, mas reservou para si a formação e instituição do nome de Maria, isto é, daquela mesma Senhora a quem no mesmo céu veste o sol, calça a lua e coroam as estrelas. Um homem escreveu e um anjo pronunciou no nosso Evangelho o nome de Maria. Quem o escreveu, foi S. Lucas: Et nomen virginis Maria[15] – quem o pronunciou foi S. Gabriel: Ne timeas, Maria[16] – mas a forma­ção e instituição do mesmo nome, nem a homens nem a anjos o comunicou Deus, mas ele mesmo o formou ab aeterno, e o manifestou em tempo, quando o tirou dos tesouros de sua divindade:A thesauro divinitatis nomen Mariae evolvitur. – para que vejamos quão alta dignidade e soberania encerra a singularidade desta exceção, ouçamos a primeira réplica daqueles a quem pode não parecer singular. No Testamento Velho a irmã de Moisés e Arão chamou-se Maria; no Testamento Novo, ainda antes de sua promulgação, as Madalenas, as Salomés, as Jacobes também se chamavam Marias: como foi logo tão singular um nome que já era tão comum? Porque este, ou o deram, ou o tomaram os homens; aquele só o formou e instituiu Deus. Vede agora quanta diferença vai de ser chamado por Deus ou por outrem um nome, ainda que seja ou pareça o mesmo.

No capítulo 48 de Isaías, falando Deus com os Israelitas, diz assim: Audi­te haec, domus Jacob, qui vocamini nomine Israel(Is. 48, 1): Ouvi-me, filhos de Jacó, que sois chamados com o nome de Israel. – E mais abaixo, no mesmo capí­tulo, falando com os mesmos, diz o mesmo Deus:Audi me, Jacob, et Israel quem ego voto (ibid. 12): Ouvi-me, filhos de Jacó, a quem eu chamo Israel. – Não sei se notais no mesmo nome de Israel a grande diferença com que diz Deus aos mesmos homens que eles são chamados, ou ele os chama: Qui vocamini Israel, et Israel quem ego voco. O qui vocamini pertence ao nome com que eles eram chamados; o quem ego voco pertence ao nome com que Deus os chama. Mas, se o nome com que eram chamados e o nome com que Deus os chama é o mesmo nome de Israel, que diferença é esta no mesmo nome? É tão grande diferença, que só o mesmo Deus, que a fez, a podia bastantemente conhecer. O nome parecia o mesmo, mas vai tanto de nome a nome e de chamar a ser chamados, quanto vai de ser a não ser; e isto não por outra razão, nem por outra diferença, senão porque o mesmo nome de Israel dantes era pronunciado por boca dos homens: Qui vocamini Israel – e agora era pronunciado por boca de Deus: Israel quem ego voco. –E se tão notável diferença foi a do nome de Israel na boca dos homens à do mesmo nome de Israel na boca de Deus, qual seria ou qual será a do singularíssimo nome de Maria em comparação da irmã de Moisés e das outras, posto que santas, que tiveram ou parece que tiveram o mesmo nome? O som da voz ou a voz do nome à mesma, mas o nome em si nessas chamadas Marias foi qui vocamini; na verdadeira e única Maria é quem ego voco. E tanto vai de nome a nome e de chamar a chamar-se quanto vai de Deus a não Deus.

Declaremos a verdade deste pensamento divino com um exemplo humano. Encarece Plínio, naquele seu tão celebrado panegírico, o nome de Ótimo, que o Senado deu ao imperador Trajano. E como no mesmo auditório assistiam os romanos todos, os quais sabiam que outros imperadores foram também cha­mados Ótimos, como responderia o famoso orador a esta objeção, que tacita­mente estava dando brados contra o que ele dizia? As palavras de Plínio são estas: Justis de causis Senatus Populusque Romanus Optimi cognomen tibi addicit. Parum id quidem, et in medio positum, novum tamen[17]: – Ainda que este nome de Ótimo, ó Trajano, parece antigo, não é senão novo, e ainda que parece comum a outros imperadores, em vós é singular. – E por quê? Porque aos outros, ou o tomou a ambição. ou o deu a lisonja, ou o introduziu e permitiu o costume; porém, a vós, depois de muito consultadas as justas causas de tão superlativo nome, vô-lo decretou e consagrou o Senado romano: Optimi cognomen Senatus Populusque Romanus tibi addicit. – E se o nome de Ótimo, consultado e decretado pelo Senado romano, é tão diferente de si mesmo, ou dado, ou tomado por outros, quão eminente dignidade será e quão incompará­vel a do nome de Maria em Maria, consultado e decretado no consistório da Santíssima Trindade, e instituído e nomeado ab aeterno, e guardado só para ela nos tesouros da divindade pelo mesmo Deus?

§ IV
O sólido fundamento, assentado sobre a definição de Aristóteles, por que do nome de Maria, não só foi Deus o autor, mas por que só Deus o podia ser. Como celebra o divino Esposo as perfeições da Virgem, Senhora nossa. A nome­ação divina como a define Platão. Adão e a imposição dos nomes do Paraíso Terreal. O defeito por que os nomes que hoje põem os homens, ou são contrários, ou impróprios, e muito alheios do que querem significar. Se Adão se mostrou tão acertado nos nomes dos animais, como o vemos tão ignorante no nome de sua própria mulher? Os outros Jesus e as outras Marias.
Assim foi, e assim havia de ser, e tão forçosa e necessariamente assim que não podia ser de outro modo. Grande glória é do nome de Maria que tivesse a Deus por autor; mas muito maior glória e soberania é do mesmo nome que não pudesse ter outro autor senão a Deus. As razões naturais desta singularíssima excelência são duas, as quais deixaram fundadas e estabelecidas, sem saberem o nome a que serviam, os dois maiores filósofos, Platão, e Aristóteles: Ratio quam significat nomen, est definito quae designat propriam rei naturam: A razão e propriedade do nome – diz Aristóteles – consiste em ser uma definição da nature­za, e essência do seu significado, isto é, daquilo que significa. – De sorte que, assim como a definição declara a natureza e essência do definido por muitas pala­vras, assim o nome é uma definição breve que o declara em uma só palavra. E como o ser e grandeza de Maria, Mãe de Deus, é tão sublime e imensa, que só o entendimento divino a pode compreender, e só ele declarar a dignidade e perfei­ções superiores a todo o criado que em si encerra, daqui se segue que assim como só Deus lhe pode compor a definição, assim só o mesmo Deus lhe pode dar o nome. Celebra o divino Esposo as perfeições da Virgem, Senhora nossa, debaixo da metáfora de todos aqueles primores e graças da natureza que fazem admirável uma extremada formosura: Quam pulchra es, arnica mea, quam pulchra est[18]! –E é coisa muito digna de reparo que em todas estas perfeições, que são manifesta­das à vista, acrescenta uma cláusula, em que excetua as que debaixo dela estão encobertas e escondidas. Falando dos olhos, diz: Oculi tui columbarum[19]– e logo ajunta: Absque eo quod intrinsecus latet[20]. – Passa a descrever os cabelos, as faces, a boca, os dentes, a fala, tudo com semelhanças pastoris: Capilli tui sicut greges caprarum, quae ascenderunt de monte Galaad. Dentes tui sicut greges tonsarum, quae ascenderunt de lavacro. Sicut vista coccinea labia tua, et eloquium tuum dulce. Sicut fragmen mali punici genae tuae –e acrescenta do mesmo modo: Absque eo quod intrinsecus latet[21]. – De maneira que não se contenta o divino Pastor com os encarecimentos do que diz, senão que em todos toma a salva, remetendo-se aos silêncios do que juntamente cala. Mas, se esses excessos ou mistérios de formosura interior os cala, porque são ocultos e encobertos, e os não podem ver os olhos, por que os não declara, ao menos para que os creia a fé? Porque são tão profundos e impenetráveis a todo o entendimento criado, que ne­nhum os pode alcançar, e só Deus os pode conhecer: Absque eo quod intrinsecus latet, hoc est, soli Deo cognitum, et nemini manifestum – comenta Ricardo de Santo Laurêncio. – E porque debaixo das perfeições e graças da Mãe de Deus, manifestas aos homens e anjos, e admiradas e celebradas por eles, estão ocultas e encobertas outras maiores, reservadas só ao conhecimento e compreensão divina, por isso, assim como só Deus lhe pode formar a definição, assim só Deus lhe pode pôr o nome. Este é o sólido fundamento assentado sobre a defi­nição de Aristóteles, porque do nome de Maria, não só foi Deus o autor, mas porque só Deus o podia ser.

Platão ainda disse mais: Dei appellatio est cum Deus facit inesse rei nominatae, id quod nomen significai: Quando Deus faz que a coisa nomeada tenha todo o significado do nome, então é sinal certo e infalível – diz Platão – que a nomeação foi divina. – Para inteligência desta filosofia, é necessário que nos ponhamos no Paraíso Terreal, quando nele não havia mais que Deus e Adão. Fez Deus que viessem diante de Adão todos os animais, para que ele lhes pu­sesse o nome, e dá testemunho a Escritura Sagrada que todos os nomes que Adão pôs aos animais foram tão proporcionados e próprios como convinha à natureza de cada um: Omni enfim quod vocavit Adam animae viventis, ipsum est nomen ejus[22]. – Agora ouçamos quão sábia e elegantemente discorre sobre esta ação S. Basílio de Selêucia, e como também dá a Deus e ao homem nela o que toca a cada um: Esto, Adam, nominum artifex, quando rerum esse non potes; formentur a are, nominentur a te; partiamur hujus fictricis solertiae glo­riam: me algnoscant artificem naturae lege, et Dominum intelligant appellati­onis nomine, finde nomen, quibus ego essentia: Se tu, Adão, diz Deus, artífice dos nomes, já que o não podes ser das coisas. Foram formadas por mim, sejam nomeadas por ti. Partamos entre ambos a glória desta grande obra: a mim reco­nheçam-me por seu autor pelo direito da natureza, e a ti por seu senhor, pela imposição dos nomes; dá tu o nome aos que eu dei a essência. – Não podia o homem subir a maior dignidade que a partir Deus com ele a glória da criação do mundo. Mas nesta partição, ou partilha, que parecia tão igual, ainda houve uma forçosa desigualdade e diferença grande. O homem pode dar o nome, mas não pode dar a essência; só Deus pode dar as essências, ainda que não dê os nomes. Mas quando Deus dá o nome é tal a eficácia da palavra e nomeação divina que pelo mesmo nome fica obrigado Deus a dar também o significado e a essência. Isto é o que disse Platão, e esta a segunda e maior glória do nome de Maria. Se Deus, antes de escolher e predestinar aquela humilde donzela de Nazaré, lhe dera o nome de Maria, era Deus obrigado por força deste nome a dar à mesma Virgem a dignidade de Mãe, e todas as outras excelências e graças para que foi predestinada, porque, faltando ao nome o seu significado, e à pessoa nomeada a sua dignidade, e à dignidade as suas prerrogativas, faltaria também Deus – o que é impossível – à verdade da sua palavra, e não seria a nomeação divina, nem ainda humana, como as de Adão no Paraíso.

Adão no Paraíso, como dissemos, posto que não pôde dar as essências às criaturas, pôde-lhes contudo dar os nomes convenientes e proporcionados às mesmas essências. E se daqui inferir alguém que os nomes das outras chamadas Marias, os quais receberam por imposição humana, terão ao menos esta proprie­dade e proporção com o seu significado, digo que de nenhum modo. A razão é porque a ciência com que Adão no Paraíso conheceu as essências dos animais, e lhe pôde dar os nomes proporcionados e próprios, não era como a que hoje têm os homens natural e imperfeita, senão outra muito mais alta, sobrenatural e infusa, de que ele e todos seus descendentes ficaram privados pela culpa. E este é o defeito por que os nomes que hoje põem os homens, ou são contrários, ou impróprios, e muito alheios do que querem significar. No mesmo Adão temos a experiência. Pôs Adão o nome à sua mulher, e chamou-lhe Eva, que quer dizer vida; e, dando a razão do nome, acrescentou um erro sobre outro, declarando que lhe chamara vida por ser mãe de todos os viventes: Eo quod mater esset cunctorum viventium (Gên. 3, 20). – Há tal cegueira? Há tal loucura? Há tal ignorância e desconheci­mento próprio? Quem foi a que introduziu a morte no mundo, senão Eva? Quem fez a todos os homens de imortais mortais, senão o serem filhos daquela mãe? Devera pois Adão chamar-lhe morte, e não vida, e mãe dos mortais ou dos mortos, e não dos viventes, como bem o argúi e convence S. Cipriano. Pois, se Adão se mostrou tão sábio e tão acertado nos nomes dos animais, como agora o vemos tão ignorante e tão errado no nome de sua própria mulher? Por que aos animais pôs-lhes os nomes com a luz e ciência sobrenatural do estado da inocência, e a Eva com a cegueira e ignorância natural do estado da culpa. Que muito, logo, que os herdeiros desta mesma ignorância pusessem o nome de Maria a sujeitos tão im­próprios e tão desiguais da grandeza e majestade deste soberano nome? Sucedeu-lhe à Mãe o mesmo que ao Filho, e ao nome de Maria com as outras Marias o que ao nome de Jesus com outros Jesus.

Considera S. Bernardo como houve um Josué sucessor de Moisés, e um Jesus Sirac, e outro Jesus, filho de Josedec, que se chamaram Jesus. Mas como desafronta o santo a soberania do nome de Jesus da baixeza de estes outros sinô­nimos? Excelentemente: Non enfim ad instar priorum meus iste Jesus nomen va­cuum et inane portat. Non est in eo magni nominis umbra, sed veritas[23]: Sabeis quanta diferença vai desses Jesus ao nosso Jesus? Quanta vai da sombra à verda­de. – Os nomes de esses outros chamados Jesus eram nomes vazios, porque so­mente tinham o som e a voz, e lhes faltava o significado. Só o nosso Jesus foi nome cheio, porque a verdade da significação enchia os vazios e as medidas do nome. É o que disse o poeta, com discreta lisonja, escrevendo a Máximo: Maxime, qui tanti mensuram nominis imples[24]. – E assim como entre todos os que se cha­maram Jesus só o Filho de Maria encheu as medidas do nome de Jesus, assim entre todas as que se chamaram Marias só a Mãe de Jesus encheu as medidas do nome de Maria. E quais são as medidas do nome de Maria? A mesma Senhora o disse: Quia fecit mihi magna qui potens est[25]. – Quem quiser tomar a medida certa ao nome de Maria, tome-a primeiro à onipotência divina, porque tudo o que Deus podia e pode é o que entesourou neste imenso nome. E se todos os poderes da onipotência são os que só enchem as medidas do nome de Maria, vede como o podia compreender outra idéia, nem pronunciar outra voz, senão a da mesma di­vindade: De thesauro divinitatis nomen Mariae evolvitur.

§V
As significações do nome de Maria: Stella Maris, Domina, Illuminatrix, Amarum mare, Deus ex genere meo.
Depois de declarado quem foi e quem só podia ser o autor do nome de Maria, que foi Deus, segue-se, como prometi, examinar a significação ou signifi­cações do mesmo nome. A língua hebréia, a caldaica, a siríaca, a arábica, a grega, a latina, todas conspiram em o derivar de diversas raízes e origens, por onde não é uma só, senão muitas as etimologias deste profundíssimo e fecundíssimo nome, e o mesmo nome, segundo a propriedade de suas significações, não um só nome, senão muitos nomes.
 A primeira etimologia, e sabida de todos, é que o nome de Maria signi­fica Stella maris: estrela do mar. O mar é este mundo, cheio de tantos perigos, combatido de todos os ventos, exposto a tão freqüentes tempestades, e em uma tão larga, temerosa e escura navegação, quem poderia chegar ao porto do céu, se não fosse guiado de lá por aquela benigníssima estrela? Quibus auxiliis possunt naves inter tot pericula pertransire usque ad littus patriae? Por que meio poderão os navegantes, entre tantos perigos, chegar às praias da pátria? – pergunta o Papa Inocêncio III – e responde que só por meio de duas coisas: nau e estrela. A nau é o lenho da Cruz, a estrela é Maria: Certe per duo, videlicet, per lignum et stellam, ide est, per lidem crucis et virtutem lucis, quam peperit nobis Maria maris stella.

A segunda significação e etimologia do nome de Maria é Domina, Se­nhora por antonomásia, porque do seu domínio e império nenhuma coisa se ex­clui: Senhora do céu e Senhora da terra, Senhora dos homens e Senhora dos An­jos, e até Senhora por modo inefável do mesmo Criador do céu e da terra, o qual lhe quis ser, e foi sujeito. Ouçamos o altíssimo pensamento de S. Bernardino, e tão verdadeiro como alto: Ille qui Filius Dei est et Virginis benedictae, volens paterno principatui quodammodo principatum aequiparare, ut sic dicam, maternum in se qui Deus erat, matri famulabatur in terra[26]: Aquele Senhor, que é Filho de Deus e da Virgem, querendo em certo modo igualar o senhorio de sua Mãe ao senhorio de seu Pai, se sujeitou e fez súdito da mesma Mãe na terra. – E isto com tanta verdade – conclui o santo – que assim como verdadeiramente dizemos que todas as coisas obedecem a Deus, até Maria, assim é verdadeiro dizer que todas as coi­sas obedecem a Maria, até Deus: Sicut verum est divino imperio omnia famulan­tur, et Virgo, ita quoque verum est Virginis imperio omnia famulantur, et Deus.

A terceira etimologia e interpretação do nome de Maria é Illuminatrix, ou Illuminans eos, isto é, a que alumia a todos os homens. Por isso é comparada a Senhora àquela coluna de fogo que de noite alumiava todo o exército e povo de Israel no deserto, enquanto caminhavam peregrinos para a Terra de Promissão: Tolle corpus hoc solare, qui diminuta mundum: ubi dies? Tolle Mariam, quid nisi caligo involvens, et umbra mortis, et densissimae tenebrae relinquuntur[27]? Tirai do mundo este corpo solar, esta tocha universal, que o alumia diz – S. Bernardo – e onde estará então o dia, ou quem o fará?– Do mesmo modo, se tirardes do mundo a Maria, tudo ficará às escuras, tudo trevas, tudo sombras mortais, tudo uma noite perpétua, sem que jamais amanheça. – E que muito é – diz o mesmo santo – que Maria alumie a terra e os homens, se, depois que entrou no céu, a mesma pátria dos bem-aventura­dos e a mesma Corte do empíreo ficou muito mais alumiada e ilustrada com os res­plendores de sua presença? Mariae praesentia totus illustratur orbis, et ipsa jam caelestis patria clarior rutilat virgineae lampadis irradiata fulgore[28].

A quarta interpretação, e que parece menos alegre, do docíssimo nome de Maria é Amarum mare: mar amargoso. Mas como podem caber as amarguras do mar, ou um mar inteiro de amargura, no nome daquela Senhora a quem nós saudamos e invocamos com ode doçura nossa? Já se vê que aludem estas amargu­ras às dores do pé da Cruz, das quais estava profetizado com o mesmo nome de mar: Magna est velut mare contritio tua[29]. – Mas, posto que as águas daquele turbulento mar foram tão amargosas para a Mãe angustiada que as padeceu, para nós, que logramos os efeitos delas, são muito doces. Porque, ainda que a miseri­córdia da Senhora foi sempre grande, as dores que então experimentou, fez a mesma misericórdia mais pronta para socorrer e remediar as nossas. Não tem menos autor esse reparo daquelas amarguras que o angélico Santo Tomás. Diz S. Paulo que Cristo quis padecer para se poder compadecer de nós: Non habemus pontifi­cem, qui non possit compati infirmitatibus nostris, tentatum per omnia[30]. – Pois Cristo, ainda que não fosse possível, nem padecesse, não se podia compadecer de nós e remediar-nos? Sim, podia – diz Santo Tomás – mas não com tanta presteza e prontidão, porque enquanto Deus só conhecia as misérias; por simples notícia, e depois que padeceu conheceu-as por experiência: Sciendum quod... posse ali-quando importa! non nudam potentiam, sed promptitudinem et aptitudinem Christi ad subveniendum: et hoc quia scit per experientiam miseriam mostram, quam ut Deus ab aeterno scivit per simplicem notitiam[31]. – Necessário foi logo na Mãe — assim como no Filho - que a experiência das dores e amarguras próprias lhe acres centasse a compaixão das alheias, e excitasse e estimulasse nas suas a prontidão de remediar as nossas.

A quinta etimologia, e também a última, como a maior e mais exce lente de todas, é singularmente do grande doutor da Igreja Santo Ambrósio, qual diz que o nome de Maria significa Deus ex genere meo: Deus da minha; geração. - Speciale Maria Domini hoc nomen invenit quod significar Deus e; genere meo. - Não declarou o santo a origem de tal nome, mas depois lhe descobriram as raízes outros autores, na derivação de duas palavras hebraicas. E que significação pode haver, nem mais alta nem tão imensa? S. Paulo em Ate nas, ensinando aos areopagitas a grande dignidade do homem e parentesco que tem com a divindade, diz que somos geração de Deus; e para isso lhes alegou como coisa conhecida até dos mais sábios gentios, o verso de Arato, poeta da sua mesma nação: Ipsius enim et genus sumus[32]. - De sorte que os homem somos geração de Deus, e Deus é geração de Maria: os homens geração de Deus, porque Deus nos deu o ser; Deus geração de Maria, porque Maria deu c ser a Deus. E isto é o que significa o nome de Maria: Deus ex genere meo. - Vede se tive razão de lhe chamar imenso, como agora lhe chamo sobre-imenso. E por quê? Porque, sendo Deus imenso e infinito, uma parte de que se compõe o nome de Maria é todo Deus. Quis Deus acrescentar o nome de Abrão, e a significação dele, que era grande: e que fez? Tirou uma letra do seu nome, a acrescentou-a ao nome de Abrão. Isso quer dizer: Nec ultra vocabitur nomen tuum Abram sed appellaberis Abraham[33]. - Este foi o acrescentamento de nome; e o do significado foi tal que, declarando-o o mesmo Deus, disse: Faci­am te crescere vehementissime (Gên. 17, 6): Far-te-ei crescer veementissima­mente. - Invente a gramática outros termos maiores de se explicar, por que os superlativos já são curtos. Se os aumentos que uma só letra do nome de Deus causou no nome de Abraão foram veementíssimos aqueles com que todo o nome de Deus entrou no nome de Maria, e o encheu Maria, Deus ex genero meo - quais seriam? Reserve-o para si o mesmo Deus, que só ele o pode compreender.

§ VI
A razão dos muitos nomes de Deus e dos muitos nomes de Maria. O que dizem Santo Tomás e S. Bernardo. Se temos tão fundadas razões para dar à Vir­gem tantos nomes, que razão teve o evangelista para lhe dar o nome de Maria somente. Os profetas e a multidão e variedade de nomes com que dizem se havia de chamar Cristo. Se os profetas dão tantos nomes a Cristo, como teve o mesmo Cristo um só nome, que foi o de Jesus?
Estas são as interpretações ou sinônimos do nome de Maria, e seu copi­osíssimo significado, e estes são, não todos, senão os principais nomes que no mesmo nome se encerram. Mas, se o evangelista nomeia a mesma Senhora por um só nome, e esse o seu próprio, por que lhe damos nós tantos outros, e tão diversos? Tantos nomes, e um só nome no mesmo sujeito? Sim. E este é o mais excelente e o mais encarecido louvor que se pode dizer do nome de Maria. A multidão dos nomes vários mostram a imensidade incompreensível do significado, e a singula­ridade do nome único mostra a compreensão imensa do nome. A Deus, não só nas Escrituras Sagradas, mas feira delas, sempre nomearam os homens e invocaram com diversos nomes. Este foi o grande e antiquíssimo assunto da sublime pena de Dionísio Areopagita, nos livros De Divinis Nominibus. E dando a razão Santo Tomás por que sendo Deus um só, sem ofensa da sua unidade, ou admite, ou necessita de muitos nomes, parte diz que é fundada na incompreensibilidade da sua grandeza, e parte na incapacidade do nosso conhecimento. Porque, como na­turalmente não conhecemos a Deus como é em si mesmo, senão por seus efeitos, assim como deles coligimos diversas perfeições divinas, assim as não podemos declarar, senão por diversos nomes: Quia enim Deum non possumus cognoscere naturaliter nisi ex effectibus deveniendo in ipsum, oportet quod nomina quibus perfectionem ejus significamus diversa sint, sicut perfectiones in eo inveniuntur diversae. -Assim filosofa altamente o Doutor Angélico sobre os muitos nomes de Deus. E dos muitos nomes da Mãe de Deus, que diremos? O mesmo proporcional­mente diz S. Bernardino: Sicut Deum ipsum non uno tantum nomine nominamus sed multis, ut sic ejus incomprehensibilitatem enuntiemus, sic et gloriosam Virgi­nem multis nominibus designamus, ut sic ad sublimitatem ejus cognoscendam aliquantulum pertingamus: Assim como – diz o santo – não nomeamos a Deus com um só nome, senão com muitos, para que, declarando cada uma das suas perfeições por partes, venhamos de algum modo em conhecimento de seu infinito ser, que é incompreensível, assim dividimos também as prerrogativas da gloriosa Virgem, declarando-as por muitos nomes, para que a sua imensa grandeza, que junta se não pode compreender, dividida, de algum modo a percebamos. – E esta é a razão dos muitos nomes, tantos e tão diversos, com que os santos padres ou celebram ou invocam a mesma Senhora.

Mas ainda não está satisfeita a segunda parte da nossa dúvida. Se nós temos uma tão bem fundada razão para dar à Virgem tantos nomes, todos devidos à sua grandeza, que razão teve o evangelista, para lhe dar o nome de Maria somen­te, e dizer que esse é o seu nome: Et nomen Virginis Maria? Assim como a nossa dúvida só achou a razão da primeira parte em Deus, assim não pode achar a razão da segunda senão em Cristo. Tão parecida é a Mãe somente com o Filho, e dele abaixo com nenhuma criatura! Uma das coisas muito notáveis nos profetas é a multidão e variedade de nomes com que dizem se havia de chamar Cristo. Baste por prova ou exemplo a profecia de Isaías. No capítulo sétimo: Vocabitur nomen ejus Emmanuel[34]. – No capítulo oitavo: Voca nomen ejus: Accelera spolia de­trahere, festiva praedari[35]. – No capítulo nono: Vocabitur nomen ejus: Admira­bilis, Consiliarius, Deus, Fortis, Pater futuri saeculi, Princeps pacis[36]. – De sor­te que um só profeta em três versos refere onze nomes com que diz havia de ser chamado Cristo; e contudo, o mesmo evangelista S. Lucas, referindo o nome que foi posto na circuncisão ao mesmo Senhor, diz que foi chamado Jesus: Et vocatum est nomen ejus Jesus (Lc. 2, 21). – Pois, se os profetas anunciaram que havia de ser chamado com tantos outros nomes, como se chamou somente Jesus, e este nome foi o que conservou sempre, desde a circuncisão até à cruz? O mesmo Dou­tor Angélico que nos deu a primeira solução nos há de dar a segunda. Argúi Santo Tomás sobre o mesmo texto de Isaías, e aperta mais o argumento com aquele princípio que os ditos dos evangelistas hão de responder aos dos profetas, porque, sendo Deus o autor de uma e outra verdade, não pode faltar nela esta consonância e harmonia. Pois, se os profetas dão tantos nomes a Cristo, como teve o mesmo Cristo um só nome, que foi o de Jesus, que refere o evangelista? Responde o mesmo Santo Tomás em duas palavras: Dicendum quod in omnibus illis nomini­bus quodammodo significatur hoc nomen Jesus: Concorda a história com a profe­cia, e o testemunho de S. Lucas com o de Isaías, porque todos aqueles nomes eram significados no nome de Jesus, e o nome de Jesus compreendia a todos. E esta mesma razão é a que teve o mesmo evangelista para dizer: Et nomen Virginis Maria – não porque negasse, ou duvidasse a verdade de todos os outros nomes que as Escrituras e os santos padres dão à mesma Virgem, mas porque todos eles estão significados no nome de Maria, e o nome de Maria compreende a todos.

§ VII
A exata anatomia do nome da Virgem Santíssima. Que significam as cinco letras do nome de Maria no comentário dos santos, expositores e doutores sagrados.
Até aqui temos declarado as significações de todo este sacratíssimo nome, e dado os fundamentos altíssimos de serem tantas. Mas ainda nos resta a especu­lação deste grande todo, parte por parte, ou anatomia deste grande corpo, membro por membro. – Assim deve fazer – diz sabiamente Filo Hebreu – quem exatamen­te quiser conhecer a essência das coisas pela propriedade e significação de seus nomes: Qui res velut per anatomiam considerant, facile assequuntur appellatio­nes earum proprias[37]. – Passando, pois, a fazer esta exata anatomia, membro por membro e parte por parte, que vem a ser examinar o significado e mistérios do mesmo nome letra por letra, vejamos em cada uma por si o que significam as cinco letras do nome de Maria. Santo Antonino, como tão douto e devotíssimo deste santíssimo nome, tirou das cinco letras dele cinco prerrogativas universais, em que parece compreendeu os poderes e mistérios de seu amplíssimo significado: e são os seguintes: M, Mater universorum; A, Arca thesaurorum; R, Regina Caelorum: I, Jaculum inimicorum: – A, Advocata peccatorum. – É, porém, o mesmo significado do nome de Maria tão imenso, e a energia de cada uma de suas letras tão fecunda, que para eu fazer alguma demonstração desta admirável fecundidade não quero tirar cinco prerrogativas das suas cinco letras, mas de cada uma delas tirarei dobrado número, e isto não repetindo ou resumindo tudo, senão alguma parte somente do que do mesmo nome e seu significado disseram os santos e escritores sagrados. Vamos letra por letra.

M, Mãe de Deus digna do digno, formosa do formoso, pura do incor­rupto, excelsa do altíssimo, diz Ricardo Victorino: Mater Dei, digna digni, formo­sa pulchri, munda incorrupti, excelsa Altissimi[38]. – M, Maria que desceu do céu, e com um manjar mais suave que o mel sustenta a todo o mundo, diz S. Máximo: Maria quae caelitus veniens cunctis populis cibum suaviorem melle defluxit[39]. – M, Mão direita de Cristo, a qual ele estende para levantar à sua graça todos os caídos – diz o Meneo Grego:Dextera Christi ad omnes erigendos extensa[40]. – M, Mestra dos mestres, porque Maria o foi dos apóstolos, diz Ruperto:Magistra magistrorum[41] . –M, Mar Vermelho que afogou o místico Faraó, isto é o demônio, diz S. João Geômetra: Mare divulsum confluens ad mergendum mysticum Pharaonem[42]. – M. Medicamento universal para todas nossas enfermidades, diz o mes­mo Geômetra: Medicina aegritudinum nostrarum. – M, Mesa espiritual, em que se nos dá vivo o pão da vida eterna, diz S. Isaácio: Mensa spiritualis vivifico animarum pane Christo instructa[43]. – M, Mediadora para o mediador, que é Cristo para com o Padre, e Maria para com Cristo, diz S. Bernardo: Opus est mediatore ad incdiatorem, nec alter nobis utilior quam Maria[44]. – M, Monte levantado sobre o cume de todos os montes, diz S. Gregório: Mons in vertice montium exal­tatus super colles[45]. – M, Morte dos pecados e vida dos justos, diz Santo Agostinho: Facta est Maria mors criminum, vita justorum[46]. – M, Mina da qual se arrancou sem mãos a pedra que encheu e cobriu o mundo, diz Hesíquio: Fodina unde prodiit lapis totam terram tegens a nullo incisus[47]. – M, Milagre dos mila­gres, e o maior de todos os milagres, diz S. João Damasceno:Miraculum omnium miraculorum maximum[48]. – M, Muro inexpugnável, e fortaleza segura da salva­ção, diz Teosterito: Murus inexpugnabilis, et munimentum salutis. – M, Mulher admiravelmente singular e singularmente admirável, pela qual se salvam os ho­mens e se restauram os anjos, diz Santo Anselmo: Faemina mirabiliter singularis, et singulariter, admirabilis, per quam salvantur homines, angeli redintegrantur[49].

Bem vejo que nesta primeira letra excedi não menos que em a metade o número prometido, mas nas seguintes, a observarei pontualmente sem sair dele, porque o não permite o tempo. A, Árvore da vida, que só foi digna de dar o fruto da saúde eterna, diz S. Boaventura: Lignum vitae, quod solum fuit dignum portare fructum salutis[50]. – A, Adjutório do Altíssimo, porque Maria ajudou e ajuda a Cristo a salvar o gênero humano, como Eva foi dada a Adão com o mesmo nome, por ser semelhante a ele, diz Hugo Cardeal: Mariae est adjutorium Altissimi, guia juvat eum ad salvandum genus humanum, unde de ipsa vere dicitur: Faciamus ei adjutorium simile sibi[51]. – A, Abismo, isto é, pego sem fundo da graça, diz S. João Damasceno: Abyssus gratiae[52]. – A, Altar animado, no qual o Cordeiro Cristo se oferece espiritualmente em sacrifício vivo, diz André Cretense:Maria est altare animatum, in quo Agnus Christus vivum sacrificium spiritualiter offertur[53]. – A, Arca do Testamento, na qual estiveram encerrados todos os mistérios e arcanos da divindade, diz Santo Ildefonso: Per Arcam uterus Virginis figuratur, quae cuncta Sacramentorum arcana in se habuit[54]. – A, Aurora do céu na terra, porque assim como a aurora é fim da noite e princípio do dia, assim Maria foi o fim de todas as dores e o princípio de toda a consolação, diz Ruperto: Sicut aurora finis praeteritae noctis est, et initium diei sequentis, sic nativita tua, o Virgo, finis dolorum et consolationis fuit initium[55]. - A, Alabastro do ungüento de nossa santificação, diz Santo Anfilóquio: Alabastrum unguenti sanctificationis[56]. -A, Aqueduto da fonte da graça, cujas enchentes, saindo do peito do Eterno Padre, se comunicaram ao homem, diz S. Bernardo: Aquaeductus, qui plenitudinem fontis ipsius de corde Patris excipiens nobis edidit[57]. - A, Abelha Virgem, que nos fabricou na terra o favo de que o mel é Cristo, diz Santo Ambrósio: Sicut apis rore caelesti, idest, grafia Spiritus Sancti pasta virgo permansit, et paradisi dulcedinem generavit[58]. - A, Aula da universal propiciação, em que se concedem os perdões a todos os pecadores, diz Santo Anselmo:Aula universalis propitiationis.

Ao A segue-se o R: R, Rainha, cujo reino, fundado na terra e consumado no céu, é de potência inexpugnável, diz André Cretense: Cujus regnum e terrenis sumptum, sed ex superna gloria potentiam habet inexpugnabilem[59]. - R, Razão única e total de todas nossas esperanças, diz S. Bernardo: Ratio tota spei nostrae[60]. - R, Raiz não só da glória, mas de todos os bens ainda desta vida, diz Crisipo: Radix omnium bonorum[61]. - R, Recreação e alívio potentíssimo de todos os afligidos, diz S. Germano: Recreatio potentissima omnium qui aflliguntur[62]. -R, Ressurreição de Adão, morto ele, e homicida de todos, pelo pecado, diz S. Efrém: Resurrectio Adami[63]. - R, Reclinatório de ouro, no qual, depois da rebelião dos anjos, reclinando-se
Deus, só achou descanso, diz S. Pedro Damião: Reclinatorium aureum, in quo Deus post tumultum angelorum requiem invenit
[64]. - R, Refrigério e orvalho da graça contra o ardor e incentivo de todos os vícios, diz Ricardo de S. Laurêncio:Refrige­rium et ros gratiae contra incentiva vitiorum[65]. - R, Refúgio de todos os que se acolhem ao seu amparo, e os faz cidadãos de uma e outra Jerusalém, diz Geórgio Nicomediense: Citvitas refugii, quae confugientes ad se cives facit utriusque Jerusalem[66]. - R, Reparadora das ruínas de Eva, para que, assim como por ela entrou no mundo a morte, por Maria se restituísse a vida, diz S. Pedro Crisólogo: Ut sicut per Evam venit ad omnes mors, ita per Mariam venerit omnibus vita[67]. - R, Rosa do paraíso do céu, diz Santa Gertrudes, e acrescenta que a mesma Senhora lhe ensinou que a invocasse com este nome:Rosa caelice amoenitatis[68].

A quarta letra do nome de Maria é o I: I, Idéia digna da divindade, diz Santo Agostinho: Si formam Dei te appellem, digna existis[69]. - I, Imagem do divino Arquétipo propriamente delineada, diz André Cretense: Imago divini Ar­chetipi recte descripta[70]. - I, Íris, sinal de paz e clemências porque, pondo Deus os olhos em Maria como prometeu do antigo arco celeste, desiste dos castigos que merecem os pecados do mundo, diz Santo Antonino: Arcus caelestis est Maria, qua apparente subtrahit se Deus a flagellis intentis in peccatores[71]. - I, Jardim de delícias, no qual estão plantadas todas as flores e se exalam os cheiros de todas as virtudes, diz Sofrônio: Hortus deliciarum, in quo sunt consita universa florum genera, et odoramenta virtutum[72]. -1, Jordão da Igreja, em cujas puríssimas cor­rentes se restitui à primeira limpeza a carne de Naamã leproso, isto é, a lepra da natureza corrupta, diz Ricardo Laurentino: Maria fluvius jordanis, in qua restitui-for caro Naaman leprosi, sicut caro parvuli pueri[73]. - I, Inventora magnífica da graça, diz S. Bernardo: Inventrix gratiae magnifica[74]. - I, Júbilo perpétuo do céu e da terra, diz S. Metódio: Laetitia caeli i, et terrae indesinens[75]. – I, Intercessora imperial que, não rogando como serva, mas mandando como Senhora, impetra do tribunal divino quanto procura, diz S. Pedro Damião: Accedis ad aureum huma­nai reconciliationis altare, non solam rogans, sed etiam imperans Domina, non ancilla[76]. – I, Jus e direito particular, pelo qual Deus decide todas as causas e demandas do gênero humano, diz S. João Geômetra: Jus dirimens lites[77]. –I, Ímã ou magnete eficacíssima, a qual, como aquela pedra atrai o ferro, assim Maria atrai e traz a Deus os duros corações dos pecadores, disse e revelou a Santa Brígi­da a mesma Senhora: Sicut magnes trahit ferrum ita ego traho Deo dura corda[78].

Só nos resta a última letra, que é o segundo A. E, posto que do primeiro dissemos tão excelentes prerrogativas, ainda são maiores as que agora ouvireis. – A, Arca de Noé, porque assim como aquela arca era composta de três estâncias, em que recolheu todas as criaturas viventes, assim Maria, sendo morada do Cria­dor, recolheu e teve dentro em si o complemento de toda a Trindade, isto é, as três Pessoas Divinas, diz Crisipo: lia Ires contignationes, nationes et mansiones ha­bebat, haec autem universum Trinitatis complementum[79]. – A, Harpa de Davi, cuja harmonia fazia fugir o demônio do corpo de Saul; e do mesmo modo o põe em fugida a consonância do nome de Maria, diz S. Gregório Nazianzeno: Qui ad Virginem, quemadmodum. Saul ad Davidis citharam, fidiumque pulsus confugit, a maio spiritu purgatur[80]. – A, Águia de Ezequiel, a qual, voando ao monte Líbano do céu, tirou de lá a medula do cedro sublime, que é o Filho, sabedoria do Padre, diz Santo Tomás: Medulla cedri sublimis est aeterna sapientia[81]. – A, Aljava de Deus, dentro da qual teve escondida nove meses aquela seta escolhida, com que havia de ferir e derrubar de um tiro o mundo, a morte e o pecado, diz Isaías: Posuit me sicut sagittam electam, in pharetra sua abscondit me[82]. – A, Antídoto da vida contra o veneno de Eva, diz, S. Bernardo: Crudelis Eva, per quam serpens etiam ipsi viro venenum infudit, fidelis Maria, quae salutis antido­tum, et viris, et feminis praeparavit[83]. – A, Armazém fortíssimo, no qual Deus se vestiu das armas de nossa humanidade, para vencer o demônio, diz Guilielmo Parisiense: In utero Virginis Deus tanquam miles in tabernaculo armaturam nos­trae humanitatis accepit contra diabolum pugnaturus[84]. – A, Asilo do mesmo Deus, porque só em Maria esteve Deus seguro de o ofenderem pecados, diz An­dreas Jerosolimitano: Maria Dei tutissimum ad habitandum asylum[85]. – A, Ân­cora firmíssima de todas nossas esperanças no mar tempestuoso deste mundo, diz Teodoro Studita: Tu enim sola te nobis securam ac stabilem anchoram praestas. – A, Atlante do céu e da terra, os quais já se tiveram arruinados, se Maria com o poder de sua intercessão os não sustentara, diz S. Fulgêncio: Caelum et terra jam diu ruissent, si non Mariae precibus sustentarentur[86]. – A, Argos vigilantíssima, com muitos olhos para ver e acudir a nossas misérias, diz S. Epifânio: Virgo plu­rium nominum, et multocula effecta est[87]. – Enfim, A, Agregado de todas as gra­ças em si mesma e para conosco, porque ao agregado de todas as águas chamou Deus maria[88], e ao agregado de todas as graças chamou Maria, diz Santo Antonino: Congregationes aquarum appellavit maria, congregationes gratiarum appellavit Mariam[89].

§ VIII
As cinco letras do nome de Maria e as cinco pedras com que Davi se preve­niu para desafiar o gigante Golias. As letras escritas nas pedras dos que atira­vam com fundas. Que nome de Deus foi o que Davi escreveu nas pedras com que venceu a Golias? As correspondências dos nomes de Jesus e de Maria. Virtudes e poderes da primeira letra dos nomes de Jesus e de Maria. O caso da pecadora da cidade de Nimega.
Feita assim, letra por letra, a gloriosa anatomia do nome admirabilíssi­mo de Maria, não é justo que passemos em silêncio os poderosos efeitos e virtude de cada uma, considerando primeiro o mistério do número de todas cinco. Haven­do aceitado Davi o desafio com o gigante, a munição que preveniu para a sua funda foram cinco pedras. E por que razão este número, e não outro? Para o tiro bastava uma, como bastou. E se para o segurar se não contentou com duas, nem três, nem quatro, por que não levou seis ou sete, senão cinco? Todos os que con­sideram este número, mais reconhecem nele o supérfluo que o necessário, e me­nos o natural que o misterioso. Qual foi logo o mistério por que se armou Davi de cinco pedras, nem mais nem menos? Filo, o autor das Antigüidades Bíblicas e o Caldeu dizem que escreveu Davi naquelas pedras o nome de Deus e dos patriar­cas. Eu bem creio que Davi no seu surrão não traria pena e tinta; mas, posto que para riscar o que dizem que escreveu bem podia haver no mesmo surrão algum instrumento pastoril, bastava que esta devota aplicação a fizesse em voz ou men­talmente. E quanto aos que têm por fábula dos rabinos este gênero de letras escri­tas nas pedras dos que atiravam com fundas, é pouca notícia da milícia antiga, na qual o usavam assim os fundibulários, que eram os mosqueteiros daquele tempo, para que no golpe da pedra se soubesse a mão de que tinha saído. E ainda hoje se acham nas campanhas daquelas batalhas algumas pedras com as mesmas inscri­ções, que em Lípsio se podem ver estampadas[90]. Isto posto, não é só verossímil, mas muito conforme ao texto sagrado que Davi escrevesse nas suas pedras, ou as dedicasse ao nome de Deus, porque quando o Gigante zombou das suas armas, lhe respondeu ele: Tu venis ad me cum gladio, et hasta, et clypeo: ego autem venio ad te in nomine Domini exercituum, Dei Israel (1 Rs. 17, 45): Tu vens contra mim armado de espada, lança e escudo; e eu venho contra ti sem outras armas, mais que o nome do Senhor dos exércitos, o Deus de Israel.

O que agora resta saber é que nome de Deus fosse este, porque Deus então tinha muitos nomes, e ainda havia de ter mais, o que Davi não ignorava como profeta. Respondem e supõem comumente os intérpretes que o nome que invocou Davi foi o nome inefável, que o mesmo Deus não quis revelar a Jacó, e depois revelou a Moisés, nome de tanta veneração que a ninguém era lícito pro­nunciá-lo. Mas o número das pedras não concorda com as letras deste nome, o qual constava somente de quatro, e por isso se chamava quadrado, ou quadrilátero e no tal caso haviam de ser as pedras quatro, e não cinco. Segue-se logo que para o número das letras concordar com o número das pedras, assim como as pedras eram cinco, assim haviam de ser cinco as letras do nome; e que nome é ou foi este de cinco letras, senão o nome santíssimo de Jesus? Assim o entendem, e com razão, todos aqueles autores, que têm para si que o nome de Deus, de que Davi disse que ia armado, não podia nem devia ser outro, senão daquele mesmo Deus que juntamente era Deus e Filho do mesmo Davi. A pedra em que se fundou a casa de Davi foi a que derrubou ao gigante; e como Davi saiu armado, não só dela, senão de todas cinco, em que ia escrito o nome de Deus, justo era que esse Deus fosse o que nasceu da mesma casa, e esse nome, o de Jesus, de tantas letras quan­tas eram as pedras. Sendo, pois, o nome escrito nas cinco pedras o nome de Jesus, bem se deixa entender que o outro nome com que Davi o acompanhou não havia de ser o dos patriarcas tão remotos, senão o da Mãe do mesmo Jesus, que igual­mente é nome de cinco letras, Maria.

Para prova desta que só parece conjectura, posto que tão adequada, temos o oráculo da mesma Senhora nas palavras do seu Cântico: Quia fecit mihi magna qui potens est, et sanctum nomen ejus[91]. – A dois princípios ou causas atribui a soberana Virgem as grandezas que recebeu de Deus: Quia fecit mihi magna – à sua onipotência: qui potens est – e ao seu santo nome –et sanctum nomen ejus. – E por que não só à onipotência, senão também ao nome? Porque este nome de Deus, por antonomásia santo, é o nome de Jesus que quer dizer salvador, e como santo nos santificou e deu graça, sem a qual nos não podíamos salvar. Repartiram, pois, entre si as grandezas que deram à Mãe de Deus a onipo­tência do mesmo Deus e o nome de Jesus. A onipotência, dando à pessoa o ser e as mesmas grandezas, e o nome de Jesus dando-lhe um tal nome que as declarasse todas, que foi o nome de Maria. Vede como em uma e outra coisa se corresponderam admiravelmente o Filho com a Mãe e a Mãe como Filho. O Filho Deus, como vimos, concebeu na mente divina o ser da Mãe: Nondum erant abyssi, et ego jarn concepta eram[92] – e depois deu-lhe por sua própria boca o nome de Maria: Ego ex ore Altissimi prodivi[93]. –E do mesmo modo a Mãe primeiro deu o ser ao Filho, concebendo-o em suas entranhas: Ecce concipies, et paries Filium[94] – e depois lhe deu o nome de Jesus: Et vocabis nomen ejus Jesus[95]. – E como estas corres­pondências foram tão iguais, que o Filho deu o ser e o nome à Mãe, e à Mãe deu o ser e o nome ao Filho, assim pedia a razão que os nomes fossem contados pela mesma medida até ao número das letras; e assim como o nome de Jesus se compõe de cinco letras, assim o nome de Maria se formasse de outras cinco.

Nem é muito que estes dois santíssimos nomes sejam tão parecidos no som das vozes quando o são nos respeitos da dignidade e nos efeitos da virtude. Em que se vê e conhece o respeito devido ao nome de Jesus? S. Paulo o disse: Donavit illi nomen, quod est super omne nomen: ut in nomine jesu omne genu flectatur caelestium, terrestrium et infernorum (Flp 2, 9 5): Deu-lhe Deus o nome sobre todo o nome, que é o nome de Jesus, diante do qual pronunciado se ajoe­lhem e o adorem todos os da terra, todos os do céu e todos os do inferno. – E este respeito proporcionadamente é o que se deve ao nome venerabilíssimo de Maria: Dedit tibi fofa supersancta Trinitas nomen, quod post nomen superbenedicti Filii tui est super omne nomen, ut in nomine tuo omne genu flectatur caelestium, ter­restrium, et infernorum[96] – diz, falando com a mesma Senhora, o doutíssimo e devotíssimo Idiota. – Deu-vos a Santíssima Trindade, ó Virgem Maria, um nome, o qual, abaixo de vosso Filho, é o nome sobre todo o nome, ao qual reverenciem e adorem, prostrados de joelhos, os do céu, os da terra e os do inferno. – Esta sentença daquele, tanto mais sábio quanto menos afetou o nome de douto, seguem hoje, louvam e alegam todos os doutores católicos. Mas isto é o menos. Pedro Blesense, aquele famoso varão em letras e piedade, que floresceu há mais de qui­nhentos anos, escreve que em seu tempo era uso e cerimonia universal da Igreja que, quando se ouvia o nome de Maria, todos se prostrassem por terra: Illico omnes audientes in genua procumberent. – E S. Pedro Damião, cem anos mais antigo, nomeando em um sermão o nome de Maria: – Esta é – disse aos seus ouvintes – aquela Senhora, a cujo nome vos inclinais com tão profunda reverên­cia: Haec est ad cujus nomen corpus humiliter inclinatis. –E se hoje não fazemos todos o mesmo, não é porque o mesmo nome seja menos digno desta adoração, mas parque nós somos indignos de o venerar como ele merece. Em todas as dioce­ses era bem que ordenassem os prelados o que refere Súrio instituiu na sua S. Gerardo, bispo das Panônias: Ut si quando Mariae nomen edicerent, confestim se ad ferram omnes prosternerent[97].

E quanto à virtude e aos efeitos do nome de Maria, semelhantes aos do nome de Jesus, porque seria matéria infinita se houvéssemos de discorrer por todas as suas letras, comparemos só uma do nome de Jesus com outra do nome de Maria, e seja em um e outro nome a primeira. Das cinco pedras de Davi, aquela que levava escrita a primeira letra do nome de Jesus, foi a primeira que ele meteu na funda. E que fez aquela primeira pedra em virtude daquela primeira letra? Fez tiro ao gigante, e derrubou-o. Diremos, pois, que o mesmo faria ou fará a primeira letra do nome de Maria? Digo seguramente que sim. A primeira letra do nome de Jesus é o J, a primeira letra do nome de Maria é o M, e tanto fará o M do nome de Maria como o J do nome de Jesus. E digo segura e constantemente que fará outro tanto porque já o fez. Ouvi um caso verdadeiramente estupendo. Junto aos muros da cidade de Nimega se achava de noite uma donzela de outro povo vizinho, a qual não quis recolher em sua casa outra mulher, que, não só por piedade cristã, mas por estreito parentesco, tinha depois da mãe as segundas obrigações de o fazer. Neste desamparo, só, triste, desesperada, e perdido totalmente o juízo, em vez de invocar a miserável o socorro do céu, chamou o do inferno, e no mesmo ponto lhe apareceu o demônio em hábito de médico forasteiro que por ali passava. Informou-se das causas de sua aflição, e não só lhe prometeu remédio para o trabalho presente, mas muito melhorada fortuna para o resto da vida, só com con­dição que quisesse ser sua. Aceitou a pobre donzela o miserável contrato, contra o qual, porém, se ofereceu uma nova dificuldade, porque sabendo o demônio que ela se chamava Maria instou que havia de deixar aquele nome, que ele sobre todos aborrecia. Tinha Maria grande afeto ao mesmo nome, posto que já tão indigna dele; enfim, vieram os dois a partido que, deixado o nome inteiro de Maria, ao menos lhe ficasse a primeira letra, e assim se chamou dali por diante Eme. Conti­nuou Eme no serviço e amizade do demônio, e já se vê qual seria a sua vida. Não era de cristã nem de criatura racional, mas de um tição do inferno, tão condenada e sem esperança de salvação corno o mesmo a quem servia. Contudo, eu ainda não desespero.

Passou um, passaram dois, passaram seis anos, em que suportou Eme o duríssimo cativeiro e jugo cruel do infernal tirano; mas como sempre conservou aquela meia sílaba do nome de Maria, posto que era uma só letra, ela bastou final­mente para o despojar da presa, e derrubar e vencer, Assim como a primeira letra do nome de Jesus lançou por terra ao soberbíssimo gigante, assim a letra também primeira do nome de Maria venceu e derrubou o demônio, o qual, como diz Santo Agostinho, no mesmo gigante se representava. Era o dia da Santíssima Trindade, quando sucedeu esta vitória, e com grande mistério, porque o melhor jeroglífico da mesma Trindade é o M, um e trino. O cetro com que ostenta seu poder, e se arma o demônio quando aparece visível, é o seu tridente de fogo; o M, entre todas as letras, também é tridente, e, competindo o tridente do nome de Maria com o tridente infernal do demônio, bem viu e experimentou ele, nesta primeira letra do mesmo nome, com quanta razão se temia de todo. Ah! mesquinho e infame enga­nador, quanto mais abatido ficou agora o teu orgulho que quando caíste do céu! Do céu derrubou-te Micael com todo o nome de Deus: Quis sicut Deus[98]? – e agora derruba-te uma mulher fraca e escrava tua, não com todo o nome de Maria, nem com uma sílaba dele, senão com uma só letra do mesmo nome.

Libertada e convertida Eme, já não Eme, senão Maria, com toda a inteireza do seu antigo nome que tanto amava, para satisfazer por seus pecados, não se con­tentou com menos que ir a Roma pedir ao Sumo Pontífice que ele lhe assinalasse a condigna penitência de tão enormes e continuadas maldades. Fez assim o pontífice. Mandou-lhe lançar ao pescoço três argolas de ferro, e outras tantas também de ferro nos braços, e que com estes, não ferretes do seu cativeiro, senão ferros duros e pesados, fizesse penitência das prisões diabólicas em que tantos anos, vivera, até que os mesmos fenos ou o tempo os desfizesse e consumisse, ou Deus os quebrasse. Assim viveu penitente em um convento de Santa Maria Madalena, presa sempre e carrega­da dos seus ferros, até que, passados catorze anos, a libertou deles, e lhos quebrou um anjo. Pois, tão tarde, e depois de tantos anos? Sim, para que se veja quanto mais poderosas são as indulgências do nome de Maria que as satisfações da penitência, por ásperas e duras que sejam. O nome de Maria, e uma só letra do nome, bastou para livrar a pecadora do poder do demônio em um dia; e rigores e ferros da penitência, para satisfazer pelos mesmos pecados, houveram mister catorze anos. Mas a peni­tência peleja contra o demônio com armas de ferro, o nome de Maria com armas de ouro. Ouçamos ao grande mestre de espírito, o devotíssimo Kempis, sobre a diferen­ça destes mesmos ferros a virtude daquele nome. –O demônio – diz ele– ou se vence com armas de ferro ou com armas de ouro: as de ferro são os jejuns, os cilícios, as disciplinas, e outras penitências e asperezas; as de ouro são os dois santíssimos e poderosíssimos nomes de Jesus e de Maria:Arma ferrea sunt cilicia, jejunia, et pa­enitentium dura opera; arma aurea sunt santissima nomina jesu et Mariae devote invocata[99]. – E paremos aqui com o segundo ponto, largo quanto à brevidade do tempo, mas, quanto à grandeza da matéria, muito breve.


§ IX
O modo com que, pela freqüente invocação do nome de Maria, nos deve­mos aproveitar dos maravilhosos efeitos de tudo o que ele significa. O mundo, hospital comum da natureza humana. Que fez o divino Mestre para serenar a tristeza da Madalena? O nome de Maria, remédio eficacíssimo para dissipar temores. O nome de Maria na anunciação do anjo e na ressurreição de Lázaro. A pega do Convento de S. Lucro: O nome de Maria e as tentações do demônio. O batismo em nome de Maria.
Para o terceiro e último prometi reservar o modo com que, pela freqüente invocação do mesmo nome, nos devemos aproveitar dos maravilhosos efeitos de tudo o que ele significa, matéria que pedia mais largo tempo do que já nos falta. O nosso português, Santo Antônio, diz que o nome de Maria é júbilo no coração, mel na boca e música nos ouvidos: Nomen Mariae jubilus in corde, meios in aure, mel in ore – e quando não fora mais que pelo gosto de lograr esta doçura, suavidade e harmonia, se devera repetir e dearticular continuamente este saborosíssimo nome. Mas ajuntemos ao doce o útil, em que consiste todo o ponto. S. Bernardo, depois de uma larga e triste representação dos trabalhos e misérias desta vida, para remédio de todos nos exorta a que invoquemos o nome de Maria, aplicando a cada um, como uma receita universal: Mariam invoca, Mariam invoca. –E, verdadeiramente, se nós mesmos nos não quisermos enganar ou cegar, que outra coisa é este mundo, senão um hospital comum da natureza humana, em que todos padecem, todos gemem, e como nele não há estado ou fortuna isenta de misérias e dores, nenhuma há também enxuta de lágrimas. Mas que maravilha seria tão grande, tão fácil e tão útil, se todos estes males se curassem, não digo com palavras, senão com uma só palavra! Pois esta palavra é o nome de Maria; e, se não, discorramos um pouco por este hospital, e perguntemos a alguns doentes qual é a sua queixa.

Tristatur aliquis? São o mal de que vos queixais tristezas que não admi­tem consolação? – diz Ricardo de Santo Laurêncio – pois invocai o nome de Maria, e vereis como essa nuvem que tendes sobre o coração se desfaz, e em lugar da tormenta vem a serenidade: Continuo ad nomen Mariae cedit nubilum, et sere-num redit[100]. – Quem mais penetrada da tristeza que a Madalena, a quem nem a vista, nem as palavras dos anjos puderam consolar? Que nuvem era tão espessa a que tinha sobre os olhos, e lhe carregava e oprimia o coração, pois, tendo presente a causa e o remédio de suas lágrimas, e vendo vivo o que chorava morto, o não conhecia? Mas, que faria o divino Mestre para que toda aquela tristeza se serenas­se e convertesse em alegria? Coisa maravilhosa! Disse-lhe o Senhor, Maria: Dicit ei Jesus: Maria (Jo. 20, 16) – e tanto que o Filho pronunciou o nome da Mãe, no mesmo ponto a Madalena conheceu a quem não conhecia, e se lançou aos pés de seu Mestre, tão mudada e tão outra, que já não cabia em si de alegria a que pouco antes estava fora de si de tristeza. E digo, tanto que o Filho pronunciou o nome da Mãe, porque, ainda que a Madalena, também se chamava Maria, o nome de Maria, que de desconsolada a consolou, e de triste a fez alegre, não foi o seu, senão o da Mãe de seu Mestre: Maria vocatur, hoc est, nomen ejus accipit quae parturivit Christum – diz com o mesmo pensamento Santo Ambrósio.

Entre todas as paixões humanas, a que mais aflige e tem mais modos de afligir é o temor. As outras atormentam com o que é, o temor com tudo o que pode ser, e não só com os males, senão com os mesmos bens. E que remédio tão certo para curar este mal sempre incerto, como o nome de Maria? Esta foi a primeira virtude em que se mostrou sua eficácia. As duas maiores propostas, que nunca se fizeram neste mundo, foi a do demônio a Eva e a do anjo a Maria: aquela, que seria como Deus, esta, que seria Mãe de Deus. E como foram aceitas uma e outra? Eva não temeu, porque não conside­rou: Maria considerou e temeu:Turbata est, et cogitabat qual is esset ista salutatio[101]. – Com alto juízo disse S. Bernardo neste lugar: Vis esse a daemone liberAngelos de caelo time: Quereis estar seguro do demônio? Temei até os anjos do céu. – Eva creu nas palavras do demônio como se fora anjo, e Maria temeu as do anjo, porque considerou que podia ser demônio. O mesmo anjo, porém, para segurar a Senhora deste temor, o que lhe disse foi: Ne timeas, Maria (Lc. I, 30): Maria, não temas. – Quando Gabriel saudou a Virgem, não disse Ave Maria, senão Ave grafia plena. Pois, se então calou o nome de Maria, por que agora o nomeia expressamente? Porque então o calar o nome foi cortesia e reverência, agora o nomeá-lo era obrigação e necessidade. Excelentemen­te S. Bernardo: Angelus intuitus Virginem, et varia eam secum volvere cogitatione faci­lime deprehendens, pavidam consolatur; confirma! dubiam, ac familiariter vocans ex nomine, benigno, ne timeat, persuade!. Ne timeas, inquit, Maria: Vendo o anjo que a Virgem não respondia, antes revolvia no pensamento as causas que tinha para duvidar e temer o que ouviu, conhecendo facilmente que estava perplexa e temerosa, para lhe sossegar a perplexidade e tirar o temor, nomeou-a por seu próprio nome, porque para confortar receios e dissipar temores não há remédio tão eficaz como o nome de Maria. – Assim o fez agora, e também depois, o mesmo anjo, quando para animar o sagrado Esposo, e o livrar da perplexidade e temor com que se achava, lhe advertiu também com a mesma expressão que a Esposa que temia receber se chamava Maria: Noli timere accipere Mariam conjugem tuam[102].


Mas, se os receios e temores forem tais que tenham chegado à desespe­ração da mesma vida, também estes não remedeia o mesmo Deus senão por meio do nome de Maria, Avisaram as duas irmãs a Cristo da enfermidade de Lázaro, e havendo-se o Senhor dilatado até o quarto dia depois de sua morte antes de entrar em Betânia, onde estava sepultado, mandou a Marta, a qual saíra a o receber, que chamasse Maria: Abiit, et vocavit Mariam sororem suam, dicens: Magister adest, et vocat te[103]. – A razão por que Cristo dilatou tanto a sua vinda foi porque não só quis sarar, senão ressuscitar a Lázaro morto de tantos dias, para maior glória de Deus, maior honra do mesmo defunto, e maior demonstração do particular afeto com que o amava. Mas a razão ou mistério por que não quis obrar aquela prodigi­osa ressurreição, sem primeiro vir Maria, assim como foi singular reparo de S. Pedro Crisólogo, assim é admirável prova de quão poderoso é o nome de Maria, ainda nos casos mais desesperados, para dar vida. Ouçamos ao santo cujas pala­vras nunca melhor mereceram o nome de áureas: Mittitur Martha ad Mariam, quia sine Maria nec fugari mors poterat, nec vita poterat reparari: Mandou o Senhor chamar a Maria, porque havia de lançar fora da sepultura a morte, e resti­tuir ao morto a vida, e nenhuma destas coisas se podia fazer sem o nome de Maria. – Mas de qual Maria? Não de Maria, irmã de Marta, senão da Maria, Mãe de Cristo. Veniat Maria, veniat materni nominis bajula, ut videat honro Christum virginalis uteri habitasse secretum, quatenus proideant ab inferis mortui, mortui exeant de sepulchris: Venha Maria, mas não enquanto o nome de Maria é seu, senão enquanto representa o nome de Maria, Mãe de Cristo: Veniat materni nomi­nis bajula –para que, quando Lázaro sair vivo da sepultura, conheça o mundo que é em virtude do nome daquela Maria, de cujas entranhas também saiu vivo o Autor do mesmo milagre. – E haverá ainda algum enfermo tão desconfiado da vida, que não espere a vida e a saúde, invocando o nome de Maria?

Passemos à vida e saúde da alma, que é a que mais importa. Esta é a enfermidade geral de que está mais cheio o hospital do mundo, e tanto mais perigosa quanto os mesmos enfermos a padecem sem dor. Os que escapam e saram são poucos, os que caem de novo e recaem são muitos, porque as tentações assopradas pelo demônio não cessam, e o remédio, que está na invocação do nome de Maria, ou não se aplica totalmente, ou se erra o modo com que se deve aplicar. Uma e outra coisa ensinou a mesma Senhora a Santa Brígida, e, depois de dizer quanto veneram o seu nome os anjos, também disse quanto o temem os demônios. Omnes etiam daemones verentur hoc nomen, et timent, qui audientes nomen Mariae, statim relinquunt animam ex unguibus, quibus tenebant eam: Também todos os demônios – diz a Virgem – temem muito o meu nome; e tanto que ouvem este nome, Maria, logo largam a alma das unhas com que a tinham presa. – Tenho notado em todas as revelações da Virgem, Senhora nossa, que o seu estilo é dar os documentos, e logo declará-los com alguma comparação; e assim o fez neste caso. – Sicut enim avis quae in prae­dam ungues, et rostrum habet, si audierit sonum aliquem, reliquit praedam, sic daemones, audito nomine Mariae, statim relinquunt animam territi: Assim como a ave de rapina, que tem a presa nas unhas, se a espantam com alguma voz, larga a presa, assim os demônios, ouvindo o nome de Maria, com medo dele, largam a alma e fogem. – Desta maneira se declarou a Senhora com aquela semelhança, a qual noutra ocasião fez evidente com o efeito. Perto de S. Lucar há um convento chamado Nossa Senhora da Regra, cujos religiosos, que são de Santo Agostinho, ensinaram uma pega a dizer: Santa Maria da Regra, o que ela repetia muitas vezes. Sucedeu, pois, que, levando um gavião nas unhas esta pega, ela, pelo costume que tinha, a voz com que naturalmente brotou na sua aflição, foi Santa Maria da Regra, e no mesmo ponto ela e o gavião vieram a terra: o gavião morto, e ela vitoriosa e livre. Mas, assim como – continua a Senhora a ensinar o que deve concorrer de nossa parte, para que o efeito da invocação do seu nome permaneça – assim como a ave de rapina que, espanta­da da voz fugiu e largou a presa, se o efeito do temor não continua, torna logo a ela, assim o faz também o demônio, tão veloz como uma seta, se à invocação do meu nome se não segue a emenda da alma que escapou das suas unhas: Iterum advolat, et revertitur ad eam quasi sagitta, velocissima, nisi aliqua emen­datio subsequatur: –Finalmente, conclui a Senhora com esta admirável senten­ça: Nullus etiam tam frigidus ab aurore Dei est, nisi sit damnatus, si invocaverit hoc nomem cum hac intentione, ut nunquam revertere velit ad opus solitum, quod non discedat ab eo statim diabolus: Nenhum homem há tão frio no amor de Deus, se não for já condenado, que, se invocar o nome de Maria com propó­sito de emenda, não se aparte logo dele e fuja o demônio.

Depois das tentações do demônio só resta o de que elas são incentivo, que é o pecado, o maior mal de todos os males, e não só enfermidade mortal, mas verdadeira­mente morte das almas. E que remédio terá um cristão grande pecador, e pouco menos ou muito mais que gentio, carregado, oprimido e afogado de um abismo sem fundo de infinitos pecados, aos quais não sabe o número, porque nunca fez conta da conta que Deus lhe dá de pedir deles? Bom remédio, e fácil –diz Alberto Magno: Este tal pecador batize-se no nome de Maria. – Notai as palavras, que são tão admiráveis, como de grande consolação para todos os tentados, e quase caídos: Si illecebrae carnis te trahant et superantes jam ad illicitas delectationes te propellant, baptiza te in amaritudine maris, et nomina Mariam, et sic pro certo in te experieris, quod juste vocatum est nomen Virginis Maria[104]: Maria quer dizer mar amargoso, e tu, ó cristão, quando te vires tão apertadamente tentado, que já te dês por vencido, batiza-te na amargura deste mar nomeando a Maria, e experimentarás em ti sem dúvida, e com toda a certeza, a virtude deste nome e a eficácia deste batismo. – Ó admirável e nunca imaginado privi­légio do nome de Maria! Nos Atos dos Apóstolos lemos que os cristãos no tempo da primitiva Igreja se batizavam no nome de Cristo: Cum vem credidissent Philippo evan­gelizanti de regno Dei, in nomine Christi baptizabantur viri ac mulieres[105] – Mas, como podia isto ser, se a forma do Batismo instituído pelo mesmo Cristo, e dada aos apóstolos, é que batizassem a todos em nome do Padre, e do Filho, e do Espírito Santo: Baptizantes eos in nomine Patris, et Filii et Spiritus Sancti (Mt. 28, 19)? – Responde Santo Tomás que foi privilégio particular revelado aos apóstolos, para que o nome de Cristo, que era odioso aos judeus e gentios, fosse mais honrado e estimado, vendo todos que pela invocação de seu nome, se comunicava no Batismo o Espírito Santo: Ex speciali Christi revelatione Apostoli in primitiva Ecclesia, ut nomen Christi – quod erat odiosum Judaeis et gentilibus – honorabile redderetur, per hoc quod ad ejus invocati­onem Spiritus Sanctus dabatur in baptismo[106]. –Pois, assim como Deus, para honrar o nome de seu Filho, dispensou que os homens se batizassem em nome de Cristo, e pela invocação do mesmo nome se lhes comunicasse o Espírito Santo, assim supõe o grande mestre do mesmo Santo Tomás que, para honrar o Filho o nome de sua Mãe, lhe conce­deu que nos pudéssemos batizar no nome de Maria, e pela invocação do mesmo nome recebêssemos a graça do Espírito Santo, não por modo de Sacramento, o que se não pode dizer, mas por outro privilégio digno de tal Mãe e tal nome. S. Bernardino de Sena lhe chama privilégio de autoridade e jurisdição, a qual diz que recebeu a Senhora desde o dia da Encarnação do Verbo, sobre todas as missões temporais do Espírito Santo, porque o mesmo Espírito Santo se não quer comunicar senão por meio de Maria: A tempere quo Virgo benedicta concepit Verbum Dei in utero, jurisdictionem et aucthori­tatem habuit super omni missione temporali Spiritus Sancti, quia non vult Spiritus Sanctus nisi per eam communicari[107].

§ X
Qual deve ser a freqüência da invocação do nome de Maria? A japonesa que invocava seu deus, Amida, cento e quarenta mil vezes ao dia. Necessidade e conveniência de invocar o nome de Maria. Quanto a Virgem Santíssima se agrada desta contínua memória e invocação de seu nome. Como pronunciar o nome de Maria com a bolsa? O respeito do nome de Maria nas pessoas que lhe levam o nome.
Este é o modo, ou estes são os modos, com que por meio da freqüente invocação do nome de Maria podemos conseguir os altos e maravilhosos efeitos que no mesmo nome se significam. E se me perguntardes qual deve ser a freqüên­cia desta invocação, que esperais que vos responda? Bastará porventura – ou por desgraça – que nos lembremos tantas vezes do nome de Maria quantas são as letras do mesmo nome? Ainda mal, porque haverá homem com nome de Cristão que nem cinco vezes no dia se lembre daquela insigne benfeitora, de quem Cristo recebeu o ser, e a quem devemos o mesmo Cristo. Na língua grega, em que as letras juntamente são números, o número que vem a fazer as letras do nome de Maria é novecentos e noventa e nove, como bem notou Georgio Veneto[108]. E seria muito que novecentas e noventa e nove vezes cada dia invocássemos o nome de Maria? Se assim o fizéssemos, é tão superior ao maná este saborosíssimo nome, que mil vezes tomado na boca nos não havia de enfastiar, mas sempre havíamos de achar nele novo sabor e doçura: Mirum illud, est de nomine Mariae, et valde mirum, ut millies auditum semper audiatur quasi novum – diz Franco Abade[109].

E para que a freqüência desta repetição nos não pareça demasiada, ou­çamos a S. Germano. Falando com a Senhora, diz assim:Non tantum caeli haustu animae nostrae respirant, quantun nominis tui protectione confirmamur[110]: – Não é tão necessária a respiração do ar, para viverem os nossos corpos, como é necessária a invocação do vosso nome, ó Virgem Maria, para viverem as nossas almas. – Noutra parte: Sicut continua respiratio non soluto est signum vitae, sed etiam causa, sic Sanctae Mariae nomen, quod in Dei servorum ore assidue versa­tur, simul argumentum est quod vivant, simul etiam hanc vitam efficit et conservat[111]: Assim como a contínua respiração não só é sinal da vida, senão também causa dela, assim a continua invocação do nome de Maria na nossa boca, não só é argumento certo de que vivemos, senão a que causa em nós e conserva a mesma vida. – Dizei-me agora quantas vezes respira cada um de nós em um dia para viver. Conte bem cada um as respirações com que vive, e sem as quais não pode conservar a vida, e então saberá quantas vezes deve invocar o nome de Maria. Confesso que parece encarecimento, mas já eu vos repeti deste lugar o exemplo de um homem leigo nesta mesma América, o qual a todas as respirações dizia a Deus: Fiat voluntas tua[112]. – Mas na Ásia, e em uma gentia, temos outro maior exemplo, e que mais nos deve confundir. É o caso que, se o não escreveram auto­res dignos de toda a fé, parecera incrível. Uma gentia japonesa era tão devota do seu falso deus, Amida, que todos os dias, furtando para isso muitas horas ao sono, invocava o nome de Amida cento e quarenta mil vezes. Mas não é coisa nova em Deus abrir os olhos com a luz da verdade, e trazer a seu serviço os que vê aplicados com extraordinário zelo ao culto de seus erros. Assim o fez com Saulo, e assim com esta idólatra, a qual no ano de mil e seiscentos e vinte e dois se fez cristã, sendo já de maior idade, e, trocando um amor por outro amor, como a Madalena, foi continuando a sua devoção com o mesmo fervor até à morte, sem outra diferença mais que mudar o abominável nome de Amida no nome santíssimo de Maria. Cento e quarenta mil vezes cada dia invocava o nome da Mãe do verdadeiro Deus no mais remoto da Ásia, para exemplo e confusão da cristandade de Europa.

Eu fiz a experiência, e achei que nem era impossível nem muito dificul­toso aquele que parece inumerável número. Mas não é esta a freqüência que eu vos pretendo persuadir. Só vos digo que invoqueis o nome de Maria quando tiver­des necessidade dele; quando vos sobrevier algum desgosto, alguma pena, algu­ma tristeza; quando vos molestarem os achaques do corpo, ou vos não molestarem os da alma; quando vos faltar o necessário para a vida, ou desejardes o supérfluo para a vaidade; quando os pais, os filhos, os irmãos, os parentes se esquecerem das obrigações do sangue; quando vo-lo desejarem beber a vingança, o ódio, a emulação, a inveja; quando os inimigos vos perseguirem, os amigos vos desampa­rarem e donde semeastes benefícios, colherdes ingratidões e agravos; quando os maiores vos faltarem com a justiça, os menores com o respeito, e todos com a proximidade; quando vos inchar o mundo, vos lisonjear a carne, e vos tentar o demônio, que será sempre e em tudo; quando vos virdes em alguma dúvida ou perplexidade, em que vos não saibais resolver nem tomar conselho; quando vos não desenganar a morte alheia, e vos enganar a própria, sem vos lembrar a conta de quanto e como tendes vivido e ainda esperais viver; quando amanhece o dia, sem saberdes se haveis de anoitecer, e quando vos recolherdes à noite, sem saber se haveis de chegar à manhã; finalmente, em todos os trabalhos, em todas as afli­ções, em todos os perigos, em todos os temores, e em todos os desejos e preten­sões, porque nenhum de nós conhece o que lhe convém; em todos os sucessos prósperos ou adversos, e muito mais nos prósperos, que são os mais falsos e in­constantes; e em todos os casos e acidentes súbitos da vida, da honra, da fazen­da, e, principalmente, nos da consciência que em todos anda arriscada, e com ela a salvação. E como em todas estas coisas, e cada uma delas necessitamos de luz, alento e remédio mais que humano, se em todas e cada uma recorrermos à proteção e amparo da Mãe das misericórdias, não há dúvida que, obrigados da mesma necessidade, não haverá dia, nem hora, nem momento em que não invoquemos o nome de Maria.

Ainda resta outra razão mais nobre e mais fina que estas da nossa neces­sidade e conveniências, e é o muito que a mesma Virgem Maria se serve e agrada desta contínua memória e invocação do seu nome. Assim o tem manifestado a mesma Senhora a todo o mundo, com admiráveis e prodigiosos exemplos. E por­que são os que mais podem animar a nossa devoção, quero acabar, referindo al­guns brevissimamente, Santo Eustáquio e o Beato Guilhelmo sempre traziam na boca o nome de Maria, e depois da morte se achou escrito na língua de um e outro o mesmo santíssimo nome com letras de ouro[113]. Tão facilmente faz Crisóstomos e Crisólogos este nome, e com tão poucas letras! Um monge, chamado Lósio, faltou uma noite às matinas, depois das quais, em honra do nome de Maria, rezava sempre devotamente cinco salmos, que começam pelas cinco letras do mesmo nome. O primeiro é Magnificat; o segundo: Ad Dominum cum tribularer; o tercei­ro: Retribue servo tuo; o quarto: In convertendo, o quinto: Ad te levavi oculos meos. Sabida a causa por que Lósio tinha faltado às matinas, foi achado morto, com o horror de todo o convento, que ainda nos timoratos costumam causar as mortes repentinas. Mas quem se tinha preparado com a invocação do nome de Maria em toda a vida, ainda que morreu sem enfermidade, não morreu de repente. Assim o mostrou logo publicamente a mesma Senhora, porque, em sinal de que aquela alma estava no paraíso da glória, brotaram no corpo defunto cinco rosas do mesmo paraíso, duas que saíam dos olhos, duas dos ouvidos, e uma da boca. Nesta estava escrito com letras também de ouro o nome de Maria, e em todas cinco as de que ele se forma, e canta no princípio dos cinco salmos.

E porque estes exemplos são para nossa doutrina, o que agora direi nos ensina um estilo com que estas cinco letras do nome de Maria se podem pronun­ciar, não só com a boca, senão também com a bolsa. Dois meses havia que um soldado espanhol no Peru não podia pronunciar o nome de Maria, porque quando o intentava, lhe apertavam com grande força e cerravam totalmente a garganta, sinal certo da mão invisível, que tanto ódio tem e tanto se teme deste sacratíssimo nome. Fazia mais admirável o caso, que não sentindo impedimento para dizer: Virgem Mãe de Deus, só pronunciar, Maria lhe não era possível. Vários remédios aplicaram os confessores doutos e espirituais, sem que tivessem efeito algum con­tra aquele garrote infernal, até que mandaram ao soldado que, em honra das cinco letras do nome de Maria, desse uma esmola aos primeiros cinco pobres que en­contrasse, e ele o fez assim. Em reverência do M, deu ao primeiro pobre uma das maiores moedas de prata que naquelas terras se lavram; outra ao segundo, em reverência do A; em reverência do R outra ao terceiro; e outra em reverência do I ao quarto; porém o impedimento como dantes. Deu finalmente a quinta moeda ao quinto pobre, em reverência do último A, e no mesmo ponto – coisa maravilhosa! – se lhe soltou a prisão da língua, e nomeou uma e mil vezes o nome de Maria, sem haver dali por diante poder ou força alguma que lho impedisse. Assim pôde Zaca­rias nomear o nome de João, depois que o escreveu, porque quer Deus que as nossas línguas se ajudem também das mãos e a Virgem Maria, cuja magnificência escreve em nós o seu nome com letras de ouro, não estima menos que a nossa caridade distribua as letras dele aos pobres em moedas de prata.

Nem só obra maravilhas a Mãe de Deus em confirmação do agrado com que aceita a honra que fazemos ao nome de Maria em si mesma, mas também em qualquer sujeito fora da mesma Senhora, por vil e indigno que seja. Ia disfarçado a umas festas de justas um cavaleiro de grande fama, insigne valor e destreza daqueles temerários jogos, quando no mesmo caminho se afeiçoou a uma donzela de extremada formosura, filha de pais honrados, mas muito pobres, aos quais ele a comprou com ricas jóias para vítima inocente de seu depravado apetite. Também aqui concorreu o medo, porque era homem poderoso e soberbo, e o que não obras­sem as dádivas, acabaria a violência e a força. Sabendo, porém, que a donzela já vendida se chamava Maria, em reverência daquele soberano nome se absteve de lhe fazer agravo; antes, porque tinha desejo e voto de servir a Deus em hábito religioso, a levou a um convento de monjas, prometendo que de volta pagaria o dote. Que errados são os pensamentos e que enganosas as esperanças dos ho­mens! Esperava o cavaleiro de voltar carregado de fama e prêmios, como outras vezes, mas na primeira justa lhe atravessaram o peito com uma lança, de que caiu morto. Caiu o corpo em terra, e a alma também cairia no inferno, se a Virgem Maria, lembrada da reverência com que honrara o seu nome, naquele último momento, de que pende a eternidade, e em tão dificultoso transe, com um ato de verdadeira contrição lhe não alcançara a graça final. Tudo isto estava oculto, e no convento tardava o cavaleiro e a promessa do dote; mas a mesma Senhora, como fiadora de sua palavra, a desempenhou, e revelando em testemunho do que tinha sucedido que desenterrado o corpo defunto do cemitério comum, lhe achariam na boca uma rosa, cujas raízes saíam do coração, que foi maior o triunfo que alcan­çou por devoto do nome de Maria que a vitória que esperava conseguir pelas armas. Desta maneira o cavaleiro e a donzela, ambos se salvaram onde ambos se haviam de perder: ela pelo nome que tinha de Maria, e ele pela reverência do mesmo nome.

§ XI
O que devem fazer as que se chamam Marias. Razões por que chama Cri­sólogo a Madalena bájula do nome de Maria? Por que diz o evangelista S. Ma­teus que veio ao sepulcro de Cristo Maria Madalena e outra Maria? Por que não se nomeia o nome de Maria no pedido indeferido da mãe dos zebedeus, Maria Salomé. Conclusão.
E se tanto se deve reverenciar este sagrado nome, ainda em sujeitos alheios, que devem fazer as que o trazem em si mesmas, e se chamam Marias? Seja este o último documento. Oh! se souberam as que se chamam Marias quão grande é o peso que tomaram e trazem sobre si nas obrigações de tão santo e soberano nome! Quando Cristo mandou chamar a Madalena para a ressurreição de Lázaro, já ouvimos o que disse S. Pedro Crisólogo – e então não ponderamos: – Veniat Maria, veniat materni nominis bajula. – Que quer dizer bajula? Bájulos se chamam aqueles homens que levam aos ombros gravíssimos pesos, e a nossa língua parece que de Maria lhe derivou o nome. Neste sentido disseram os evan­gelistas de Cristo carregado com o peso da cruz: Bajulans sibi crucem exivit[114]. – Pois a Madalena chama a eloqüência de Crisólogo bájula do nome de Maria: Materni nominis bajula?– Sim, porque, chamando-se Maria, trazia sobre si o peso imenso do nome da Mãe de Deus, e das obrigações e encargos do mesmo nome. Quem se chama Maria há de imitar as virtudes e pureza da primeira e única Maria. Na mesma Madalena o temos. Quando a mesma Madalena veio aos pés de Cristo, diz o evangelista S. Lucas que era uma mulher pecadora: Et ecce mulier, quae erat in civitate peccatrix[115]– e pouco depois, fazendo menção das mulheres que se­guiam e serviam a Cristo e seus discípulos, pelas cidades e lugares onde pregavam o Evangelho, diz que uma delas era Maria Madalena:Maria, quae vocatur Mag­dalene (Lc. 8, 2). – Pois, se agora lhe chama o mesmo evangelista Maria, por que dantes lhe não chamou Maria? Excelentemente o venerável Beda: Maria Magda­lene ipsa est, cujus tacito nomine proxima lectio poenitentiam nominat: nam pul­chre evangelista ubi eam cum Domino iter facere commemorat, proprio hanc vocabulo manifestat: Esta Maria Madalena de que fala o evangelista em um e outro lugar, não eram duas, como alguns falsamente cuidaram, senão a mesma. Mas o evangelista, com grande propriedade e advertência, agora chamou-lhe ma­nifestamente Maria, e dantes calou-lhe o nome, porque dantes disse que era peca­dora, e agora diz que seguia a Cristo. – Se as que se chamam Marias seguem a Cristo, são Marias; mas se são pecadoras, e o não seguem, não são Marias, porque são indignas de tão santo e tão soberano nome. O mesmo S. Pedro Crisólogo em mais breve e aguda sentença. Diz o evangelista S. Mateus que veio ao sepulcro de Cristo Maria Madalena e outra Maria: Venit Maria Magdalene, et altera Maria (Mt. 28, 1). – Esta Maria Madalena e outra Maria, eram duas ou uma? Uma – responde o santo – mas já muito outra do que tinha sido: Venit mulier; et rediit Maria: veio mulher, e tornou Maria. – Eis aqui como as que se chamam Marias devem tornar deste sermão. Se vieram mulheres, tornem Marias.

Finalmente, assim mulheres, como homens, se até agora não eram devo­tos do nome de Maria, de hoje por diante o levem escrito nos corações, e o tragam continuamente na boca, presentando a Deus este breve e eficacíssimo memorial, seguros de sua intercessão e valia, que nenhuma coisa pedirão a sua divina mise­ricórdia e bondade que lhes seja negada. A mãe de S. João e S. Tiago chamava-se Maria Salomé, e quando eles pretenderam as duas cadeiras do lado de Cristo por meio dela, diz o evangelista que fez a petição a Cristo a mãe dos filhos de Zebedeu: Accessit ad Jesum meter filiorum Zebedaei (Mt. 20, 20). Pois, por que a não nomeou o evangelista por seu nome, e usou deste rodeio de locução tão extraordi­nário? Outros darão melhor razão. Mas o certo é que Cristo nesta ocasião negou aos dois irmãos o que pretendiam, e com grande fundamento se pode crer que o Espírito Santo, que governava a pena dos evangelistas, o dispôs assim, para que na Sagrada Escritura não houvesse um texto em que juntamente se nomeasse o nome de Maria, e se lesse que Cristo negara o que lhe pediam. Diz o mesmo Cristo que tudo o que pedirmos em seu nome nos concederá seu Eterno Padre; e se o Pai concede tudo o que se lhe pede em nome do Filho, como não concederá o Filho tudo o que se lhe pede em nome da Mãe? Peçamos confiadamente debaixo do seguro deste poderosíssimo nome, e não peçamos pouco. Peçamos muito, ou pe­çamos tudo, que é a graça, penhor da glória: Quam mihi, etc.






Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística




[1] E o nome da virgem era Maria (Lc. 1, 27).

[2] Quem é esta que sobe pelo deserto, como uma varinha de fumo composta de aromas de mirra e de incenso, e de toda a casta de polvilhos odoríferos (Cânt. 3, 6)?

[3] Quem é esta que vai caminhando como a aurora quando se levanta (Cânt. 6, 9)?

[4] Idiota, f de Contemplai, Deiparae.

[5] Richard. a S. Laurent. in haec loca.

[6] Idiota, I de Contemplat, Deiparae.

[7] S. Brig. in Revelat. lib. 1. e. 1b.

[8] Ainda não havia os abismos. e eu estava já concebida (Prov. 8, 24).

[9] Eu saí da boca do Altíssimo. a primogênita antes de todas as criaturas (Eclo. 24, 5).

[10] P. Dam. Serro. 9 de Annunt.

[11] Produza a terra erva verde e árvores frutíferas (Gên. 1, 11).

[12] Produzam as águas réptis de alma vivente, e aves que voem sobre a terra (ibid. 20).

[13] Produza a terra animais viventes segundo o seu gênero: animais domésticos, réptis e bestas (ibid. 24).

[14] Fez Deus dois grandes luzeiros, um maior, que presidisse ao dia, outro mais pequeno, que presidis­se à noite; e criou também as estrelas. E pô-las no firmamento (ibid. 16 s).

[15] E o nome da virgem era Maria (Lc. 1, 27).

[16] Não temas, Maria (ibid. 30).

[17] Plinius in Paneg. Trajani.

[18] Oh! como és formosa, amiga minha, como és bela (Cânt. 4, 1)!

[19] Os teus olhos são como os das pombas (ibidem).

[20] Sem falar no que está escondido dentro (ibidem).

[21] Os teus cabelos são como os rebanhos das cabras que subiram do monte de Galaad. Os teus dentes são como os rebanhos das ovelhas tosquiadas, que subiram do lavatório. Os teus lábios são como uma fita de escarlate, e o teu falar é doce. Assim como é o vermelho da romã partida, assim é o nácar das tuas faces, sem falar no que está escondido dentro (ibid. I ss).

[22] Porque todo o nome que Adão pôs de alma vivente, esse é o seu nome (Gên. 2, 19).

[23] Bernard. Serm. l de Circun.

[24] Máximo, que enches as medidas de tão grande nome. (Ov. Pont. 1, 1, 2). 

[25] Porque me fez grandes coisas o que é poderoso (Lc. I, 49).

[26] Bernar. Tom. 4, Serm. 5, e. 6.

[27] Ber. Ser de Aquaeduct.

[28] Ber. Ser. de Annunt.

[29] Grande é como o mar o teu desfalecimento (Lam. 2, 13).

[30] Não temos um pontífice que não possa compadecer-se das nossas enfermidades, mas que foi tentado em todas as coisas (Hebr. 4, 15).

[31] D. Thom. Comment. in eum locum.

[32] Porque dele também somos linhagem (At. 17, 28).

[33] Daqui por diante não te chamarás mais Abrão, mas chamar-te-ás Abraão (Gên. 17, 5).

[34] Será chamado o seu nome Emanuel (Is. 7, 14).

[35] Põe-lhe por nome: Apressa-te a tirar os despojos, faze velozmente a presa (Is. 8, 3).

[36] O nome com que se apelide será: Admirável, Conselheiro, Deus, Forte, Pai do futuro século, Príncipe da paz (Is. 9, 6).

[37] Philo Heb. lib. de Agricultura.
  
[38] Bernard. de S. Victor. Ser: de Assumpt.

[39] D. Max. Ser: in Ramis Palmar.

[40] Ex Men. Graec.

[41] Rup. in cap. 5 Cant. et alibi.

[42] Joan. Geomet. in Cat. Corder.

[43] Isaac ia Maeneis Graec.

[44] Ber. in Ser. in Signum Magnum.

[45] Greg. in lib. I in I Reg.

[46] Aug. Ser. de Nat. V.

[47] Hesich. orat. 2 de Deipara.

[48] Damascen. Tract. 2 de Nat. V.

[49] Ansel. Alloq. caelest. 27.

[50] Bonav. in Laud. V. n. 2.

[51] Hugo Card. in Psal. 90.

[52] Damasc. oral. 2 de Assumpt.

[53] Andr. Cretens. orat. de Nat. V.

[54] Ildefons. ser: I de Assumpt

[55] Rupert. Cant. c. 5.

[56] Amphil. oral. ia S. Deiparam.

[57] Bern. Serm de Nativit. Virg.

[58] Amb. lib. de Virg.

[59] Andreas Cretens. orat. 2 de Assumpt.

[60] Ber: Ser de Nat. V.

[61] Chrysip. oral. de Deipara.

[62] D. German oral. de fasciis Salvat.

[63] Efrem, de Laud. V.

[64] P. Dam. Ser. de Annunt.

[65] Richard. a S. Laurent. sup. cap. 6 Ose.

[66] Georg. Nicom. orat. de Oblat.

[67] P. Chrys. Ser. 99.

[68] Getrudes lib 3. de Dinin. lnsinuat. cap. 19.

[69] August, Serm. 35 de Sanctis.

[70] Cretens. Orat. 3 de Assumpt

[71] Anton. opusc. de B. M. cap. 38.

[72] Sophr. homil. de Assumpt.

[73] Richard. Laurrent. de Laud. c. 6. 9.

[74] Bern. Epist. 149.

[75] Method. Orat. Hipap.

[76] P. Dam. Ser. 2 de Nativ. V.

[77] Joann. Geomet. Hymn. 4 de B. V.

[78] S. Brig. Rev. 3 cap. 32.

[79] Chrysip. Homil. t de Laud. Mariae.

[80] Nazian. orat, 18 in Laud. S. Cypr:

[81] D. Thom. opusc. 58. c. 25.

[82]  Is. 49, 2.

[83] Ber. de Laud, V.

[84] Guilliel. Paris in fest. Assumpt. Relat. 3.

[85] Andr. Hieros. Serm. de Annunt.

[86] S. Fulg. in Mitholog.

[87] Epiph. de Laud. Mariae.

[88] Pronuncia-se mária.

[89] S. Antoninus 4 p. tit. 15, cap. 4.

[90] Lypsius in Poliocertic. lib.4.

[91] Porque me fez grandes coisas o que é poderoso, e santo é o seu nome (Lc. 1, 49).

[92] Ainda não havia os abismos, e eu estava já concebida (Prov. 8, 24).

[93] Eu saí da boca do Altíssimo (Eclo. 24. 5)

[94] Eis conceberás no teu ventre, e parirás um filho (Lc. I, 31).


[95] E pôr-lhe-ás o nome de Jesus (ibidem).

[96] Idiota, de Contempl. V.

[97] Para que, ao pronunciar o nome de Maria, todos imediatamente se ajoelhem (Gerard. Episcop.).

[98] Quem como Deus?

[99] Thom. de Kempis in Hosp. c. 15.

[100] Richard. a S. Laurent.

[101] Turbou-se, e discorria pensativa que saudação seria esta (Lc. 1, 29). (102) Não temas receber a Maria, tua mulher (Mt. 1, 20).
  
[102] Não temas receber a Maria, tua mulher (Mt. 1, 20)

[103] Retirou-se, e foi chamar em segredo a sua irmã Maria, a quem disse: É chegado o Mestre, e ele te chama (Jo. 11, 28).

[104] Albert. Magn. in cap. I Luc.

[105] Porém, depois que creram o que Filipe lhes anunciava do reino de Deus, iam se batizando homens e mulheres em nome de Cristo (At. 8. 12).

[106] D. Thom. 3 par. q. 66, art. 6.

[107] S. Bern. Ser. 2 de Assumpt.

[108] Georg. Venet. in Arm. Mundi, Gant. I, tit. 5.

[109] Franco Abbas, de Grafia Novi Testamenti.

[110] S. Germ. de Dormit. V.

[111] S. Germ. Orat. de Deipara.

[112] Seja feita a tua vontade (Mt. 6, 10).

[113] Hist. Cisterc. Quintaduenas, lib. de Nom. Mariae, Belvasc. in Speculo Histor. lib. 64, cap. 116.

[114] E, levando a sua cruz às costas, saiu (Jo. 19, 17).

[115] E no mesmo tempo uma mulher pecadora, que havia na cidade (Lc. 7, 37).



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