sexta-feira, 20 de maio de 2016

Mãe Imaculada

Mater intemerata, ora pro nobis.



O Senhor me criou, como primícia de suas obras, desde o princípio, antes do começo da terra. (Prov., 8)
...as portas do inferno não prevalecerão contra ela. (Mateus 16)







Na versão em latim da Ladainha Lauretana, o termo que foi traduzido para a nossa língua como “imaculada” é “intemerata”. Pe Paschoal Rangel nos ensina que este termo, “intemerato”,  significa intacto, intocado, íntegro. Maria, diz-nos ele:

 não é apenas a “não violada”. É a intocada, aquela de quem nenhum mortal se aproximou “temerariamente”, isto é, atrevidamente. O advérbio latino “témere” (que está presente no “in-temerato”) inclui o significado de levianamente, sem consideração. Maria é aquela que não se pode tratar leviana e desconsideradamente. Ela é “in-temerata”.
É gostoso ver a Igreja se deixando arrastar na alegria da louvação à virgindade de Nossa Senhora. Nisso ela se esmera, rebusca palavras, chega a sutilezas originais. Os termos vão-se refinando para dizer tudo ou dizer mais. Essa expressão “Virgem intemerata”, por ex., vai tão longe quanto é possível à língua da gente.
Os filósofos Ernout e Meillet, em seu Dictonnaire étymologique de la langue latine – Histoire des mots -, ensinam que há, em latim, uma palavra rara, própria da linguagem poética e religiosa: é o verbo “temerate”, que significa “violare sacra et contaminare” (violar o sagrado e contaminar). “Temerare” = “con-taminare”. Este “taminare” tem a ver com a palavra sânscrita “támisrah”, que quer dizer “trevas”. A treva não deixa ver, oculta armadilhas, perturba, faz cair, suja. O “temerare” tinha o sentido principal de falta de temor de Deus, de “tratar desconsideradamente (falando, tocando) as coisas sagradas”.
Os Santos Padres, tão íntimos, tão afinados com a “alma” da Igreja, se derramavam em louvores, quase em piedosos excessos. Santo Efrém, por ex.: “Virgem que gerou a Luz, sem ficar com nenhum sinal, como outrora a sarça (de Moisés) que ardia em fogo sem se queimar”. Ou Santo Epifânio: “Virgem ainda mais pura depois do parto”. Ou São João Crisóstomo: “Virgem que permaneceu Virgem, mesmo sendo verdadeiramente mãe”. Ou São Gregório Magno: “Virgem, que deu à Luz, e, enquanto dava à luz,  duplicava sua virgindade”. E assim infindavelmente.
É isto: na “Virgem intemerata”, tudo é luz, nada há de obscuro, de manchado: ela pertence ao reino do sagrado, que o espírito das trevas não ousou e não conseguiu “con-taminar” (entrevecer, ensombrar com suas “támisrah”), mas que Deus inundou de sua claridade.
(RANGEL, 1991)

Basadonna, por sua vez, afirma que este título é o mais luminoso da figura de Maria ao lado do de sua maternidade divina e virginal e que Deus preparou essa mulher, a quem convidaria a colaborar em seu projeto de encarnação, redimiu-a de modo singular e único e libertou-a de todo traço de pecado desde o primeiríssimo momento de sua existência.

Mãe de Jesus, que vencerá definitivamente o mal e o “príncipe deste mundo”, do Jesus que dará início aos “últimos tempos” ou ao tempo da salvação, Maria foi a primeira a experimentar o dom da libertação do mal, da redenção que Jesus, o Filho de Deus, realizaria por sua vida, morte e ressurreição.
Bastam essas duas palavras para descortinar à reflexão devota um horizonte maravilhoso, para revelar o projeto de Deus a um só tempo rico e imerecido, e conduzir ao limiar de um mistério jamais inteiramente explorado e sempre capaz de suscitar sentimentos de gratidão, confiança e esperança.
É preciso que levantemos a cabeça com mais frequência e não nos deixemos encerrar nas fronteiras diminutas e sufocantes da experiência cotidiana, dos limites e fraquezas que nos restringem: Deus pensou “grandes coisas” em nosso favor, inventou “novos céus e nova terra”, que também podem ser entendidos no sentido de uma vida diferente daquela a que nos acostumamos; em Maria, Deus descreveu não apenas seu amor e seu poder infinitos, mas também nosso destino, as possibilidades impensáveis que se acham a nosso dispor.
A figura de Maria, que muitas vezes imaginamos na doçura da maternidade, revela cada vez mais a grandeza vertiginosa do mistério que nela habita, e oferece a nossa fantasia, mesquinha e repetitiva, a novidade perene que Deus opera nela e, por meio dela, em todos nós.
A invocação de Maria como “mãe imaculada” leva-nos também a salientar a palavra “mãe”, acolhendo seu convite materno a que realmente nos tornemos seus filhos, gerados por ela, semelhantes a ela, que é imaculada e isenta de pecado e constitui o sinal mais vivo da redenção que se oferece a todos.
Essa atitude implica para nós, que nos dizemos seus “devotos”, a certeza de que também somos chamados à santidade, de que também somos capazes de evitar o mal, de que também somos objetos do amor de Deus que nos quer conduzir às grandes alturas para as quais fomos criados.
É verdade, porém, que experimentamos todos os dias o peso da culpa e da fraqueza inerente à natureza humana; devemos reconhecer todos os dias a contradição que fere nossa vida e nos distância tanto da bondade como da pureza com as quais sempre sonhamos. Somos pecadores e fracos, percebemos em nosso íntimo a um só tempo o apelo fascinante da santidade e o pendor quase invencível ao egoísmo, à sensualidade, ao orgulho e à resignação ao que nos parece mais forte que nós.
Mas temos aí precisamente a força da devoção a Nossa Senhora, temos aí também sua tarefa de “mãe” que quer nosso bem e continuamente nos convida à nossa verdadeira dignidade e oferece sua ajuda e companhia pelos caminhos da santidade.
Sentimos em nosso íntimo, toda vez que repetimos essa invocação, o convite a reencontrar em nós mesmos aquele dom de Deus que nela foi total, sentimos a necessidade de soltar os laços que sempre nos envolvem e impedem de ascender a níveis mais elevados. Somos, por assim dizer, “incomodados” pela figura luminosa e atraente de Maria que nos quer fazer entender o sentido de nossa fé, o valor da oração e o poder de sua ajuda para que acolhamos também nós o dom misericordioso de Deus.
A “mãe imaculada” quer tomar-nos pelas mãos e levar-nos ao encontro de Jesus, o Salvador, que deseja nos libertar de nossos pecados.
(BASADONNA, 2000)


Dom Vaz dirá que desde o primeiro momento de sua existência, Maria é imaculada, a toda pura, Aquela que foi saudade pelo Anjo como a “cheia de graça” (Lc 1,28). E continua:

Podemos dizer que Deus se esmerou ao criar Maria, d’Ela fazendo a obra-prima de suas mãos. Deus é Sumo Bem, a Beleza Incriada. Tudo que há de bom e de belo nas criaturas é um reflexo do Deus infinitamente bom, do Deus cuja beleza excede tudo em que pudermos pensar, qualquer coisa bela que pudermos imaginar. Com Deus acontece de modo diferente do que com os seres humanos. Nós encontramos ou descobrimos o objeto de nosso amor. É algo ou alguém que nos atrai pelo que tem de bom e de belo. Podemos melhorar esse objeto, mas nunca transformá-lo. O objeto de nosso amor não procede de nós, não depende de nós. É algo ou alguém que se impõe a nós. Com Deus não é assim. É Ele o Criador de todas as coisas, Criador de tudo que Ele ama fora de si mesmo. E Deus ama suas criaturas na medida em que elas refletem, de modo maior ou menos, Sua bondade e Sua beleza infinitas.
Sendo escolhida entre todas as mulheres para ser Mãe do Filho Unigênito de Deus, o “Filho muito-amado em que coloco toda a minha complacência” (Mt 17,5), Maria tinha um lugar privilegiado no amor divino, acima de todas as outras criaturas. Por isso, Deus colocou todo seu poder, todo seu esmero em realçar a bondade e a beleza de Maria, que podem ser consideradas o máximo de beleza e de bondade que procedem do amor de Deus, do seu poder criador e santificador.
A pureza imaculada de Maria brilha em suas palavras e em seu silêncio, irradia de seu rosto, de seu olhar e de seus gestos. A pureza nasce do coração, mas brilha e irradia em nosso exterior. A pureza é que nos liberta e nos abre o coração para ouvir a voz de Deus, para crer em sua palavra e para estabelecer com o Espírito, “por quem o amor de Deus é derramado em nossos corações” (Rm 5,5), uma íntima relação dialogal de amor que caracteriza a vida interior de quem ama a Deus. Maria é, pois, por excelência, a Virgem obediente – “feliz porque teve fé” (Lc 1,45), Aquela que tudo guardava e meditava na intensa vida interior de seu Coração Imaclado (Lc 2, 19,51).
A pureza de coração, de corpo e de ações não é uma virtude passiva. Ela determina na vontade uma plena sujeição ativa ao senhorio de Deus, sem se deixar contaminar pelo egoísmo ou pela busca de si mesmo. Assim foi Maria: “Eu sou a serva do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).
Para acolher o Filho de Deus em suas entranhas imaculadas, para formá-Lo e trazê-Lo com seu leite virginal, para poder acompanhar seus primeiros passos e ensiná-Lo a falar, somente aquela Mãe toda pura e imaculada que foi Maria. À medida que Jesus ia crescendo, sua Mãe contemplava, com enlevo e ternura, aquele rosto cujo aspecto ia mostrando os traços físicos recebidos de Maria: contemplava o modo de falar e de agir de Jesus que tanto lembravam sua Mãe. A bondade, a ternura, o amor humano-sensível de Jesus, que tanto atraíam as crianças e os simples, que fascinavam os pecadores e as pecadoras tão carentes de um verdadeiro amor, refletiam a herança humana que o Filho de Maria recebera de sua Mãe imaculada.
Maria imaculada, que também nós recebemos por Mãe, se torna para nós, por sua pureza, um ideal, um incentivo e um modelo. Ela é para os consagrados a Maria o ideal celeste de que seguimos os encantos, como falava a antiga letra do hino oficial das Congregações Marianas do Brasil. Ou, como gostava de dizer o Santo Padre João Paulo II, Maria é “uma referência essencial para nosso caminho para Deus”!
(VAZ, 2005)


Virgem Imaculada, por Deus predestinada acima de todas as criaturas como advogada de graça e modelo de santidade para o seu povo, a vós renovo no dia de hoje a confiança de toda a Igreja. Sêde vós quem orienta os seus filhos na peregrinação da fé, tornando-os cada vez mais obedientes e fiéis à Palavra de Deus. Sede vós quem acompanha cada cristão ao longo do caminho da conversão e da santidade, na luta contra o pecado e na busca da verdadeira beleza, que é sempre um sinal e um reflexo da Beleza divina. Sede vós, ainda, quem obtém a paz e a salvação para todos os povos. O Pai eterno, que vos quis como Mãe imaculada do Redentor, renove também no nosso tempo, por vosso intermédio, os prodígios do seu amor misericordioso.
Amém!














Notas:

BASADONNA, Giorgio. Ladainhas de Nossa Senhora. São Paulo: Loyola, 2000.
RANGEL, Paschoal. Maria, Maria.... Belo Horizonte: O Lutador, 1991.
VAZ, Dom José Carlos de Lima. O louvor de Maria. São Paulo: Loyola, 2005.

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